quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Charge: Santiago


Esta charge do Santiago foi feita originalmente para o A Charge OnLine

O “New Deal” de hoje passa pela redução da jornada de trabalho

OLGÁRIA MATTOS

É sugestivo do grau de entorpecimento intelectual que embala a vida interna das universidades e dos partidos políticos, que parta de uma filósofa, e não de economistas, a incisiva proposição de luta para devolver ao trabalho a centralidade que ele ainda deve ter nas relações sociais neste início de século XXI. Leia entrevista com Olgária Mattos.


Redação - Carta Maior


De onde pode partir a resistência a uma “solução conservadora” para a crise econômica mundial? Como evitar que os mesmos fios esgarçados das finanças desreguladas acabem por cerzir uma nova trama de reordenamento, tão ou mais regressiva que aquela urdida pela supremacia da lógica financeira sobre todas as dimensões da vida social ? Em que medida a subjetividade entorpecida por três décadas de anestesia mercadista será capaz de superar o funeral da esperança e ressuscitar valores, e práticas, afinados com outro registro histórico? Essas e outras perguntas esbarram numa parede de ceticismo mais ou menos generalizado que circunda o ambiente intelectual brasileiro nesse momento. Dentro e fora da academia.

A filósofa Olgária Mattos, professora titular da Universidade de São Paulo, não desafina o cantochão com placebos de um otimismo dos contentes, mas tampouco se entrega ao descompromisso niilista dos que se divorciaram da História para vocalizar crônicas de um vôo cego.

Pessimista na reflexão, mas aguerrida nos requisitos à ação, Olgária não faz rodeios e vai ao ponto nesses dias em que as palavras capitalismo e crise voltaram a se combinar nas manchetes da grande imprensa mas, paradoxalmente, estão ausentes ou rebaixadas nos debates acadêmicos.

“A diferença crucial no enfrentamento dessa crise em comparação com avanços obtidos em 1929”, diz ela em entrevista a Carta Maior, “decorre do rebaixamento ao qual o trabalho e os trabalhadores foram relegados na arquitetura da sociedade em nosso tempo”.

O diagnóstico não é novo. Mas ao contrário dos que enxergam nisso quase um fim da história, à gauche, por conta da inexistência de um sujeito coletivo capaz de injetar dialética no absolutismo do presente, Olgária rebate: “Claro que o trabalho continua relevante para a existência de uma sociedade virtuosa”, e saraiva uma pergunta atrás da outra: “Você tem idéia de quantas pessoas são necessárias para cuidar de um idoso durante 24 horas? Quantas vagas teriam que ser abertas se fossemos, de fato, educar as nossas crianças, e ampará-las desde a tenra infância, com uma formação republicana de qualidade? E, sobretudo”, conclui sem hesitar diante dos desdobramentos do seu raciocínio, “será que nós temos idéia do que representaria socialmente a ativação desse conjunto de políticas públicas associada a uma redução da jornada de trabalho; e do efeito que essa disseminação do emprego e do tempo livre teria sobre o lazer e a participação política?”

Outubro de 1929 versus outubro de 2008
Cenário de uma das crises mais virulentas da história do capitalismo - insistentemente evocada nos dias de hoje - o contraponto dos anos 30 , mencionado pela professora Olgária Mattos, ficou na memória como a “Década do Diabo”; aquela que começou com uma Depressão e terminou em uma Guerra Mundial. A rememoração dos indicadores sociais daquele período confirma a pertinência do epíteto, revelando uma ciranda de quebradeiras e desemprego que teve seu ponto de partida no “crash” da Bolsa de Nova Iorque, em outubro de 29. Nove mil bancos faliram então nos EUA; 25% da população economicamente ativa foi jogada no desemprego.

Ondas de propagação da crise varreram o planeta. A retração da liquidez na Alemanha foi tal que o escambo terminou oficializado em algumas regiões; o desemprego atingiu 60% da juventude alemã e pavimentou o recrutamento das milícias nazistas. Na França, a retração da demanda gerou uma deflação destrutiva que reduziu em 40% o preço do trigo, inibindo a produção. Na Inglaterra, milhares de mineiros, colhedores de algodão, jovens e velhos ocuparam as ruas espetando acampamentos de desempregados em vários pontos de Londres. No mundo todo, mais de 30 milhões de trabalhadores foram excluídos do sistema econômico disseminando revolta, fome e desalento. Par se ter uma idéia do que isso significou, a OIT prevê que a crise atual poderá gerar 20 milhões de desempregados num mundo com demografia várias vezes superior à de 29.

Mas se a intervenção pública se mostra mais resoluta hoje, comparada à timidez dos governos no início da crise de 29, o pano de fundo político é flagrantemente desfavorável a um reordenamento social emancipador. A sociedade dos anos 30 emparedou a hesitação dos seus dirigentes num torniquete progressista de muitas voltas feito de engajamento sindical; expansão das idéias socialistas; efervescente agitação intelectual e artística.

“O trabalho organizava o tecido social”, reafirma a professora Olgária. “A criação de laços duradouros entre operários de uma mesma base injetava confiança, solidariedade e esperança em todo o corpo social e não apenas nas corporações. A esperança é parteira do futuro; como é que você pode almejar outro futuro sem esperança e como ter esperança se não dispõe de laços de auto-confiança, necessariamente coletivos? Havia assim uma percepção de responsabilidade social, distinta da desresponsabilização que predomina hoje e contamina todos os interstícios da vida. Vá ao metrô e veja”, dispara Olgária Mattos: ‘jovens fingem que estão dormindo para não ceder lugar a um idoso. É só a ponta do icebergue. Daí a dissociação entre o que se gostaria que fosse a ação política diante da crise e o comportamento de indivíduos atomizados, partidos por formas precárias de inserção no mercado e na vida".

Eis a razão, retoma a filósofa, “do descompasso entre a crise e as respostas a ela; entre 1929 e 2008. Mas, repito, não é verdade que o trabalho deixou de ser necessário; ele foi descartado por uma estrutura econômica e de poder que redobrou o grau de exploração sobre uma parcela dos trabalhadores. A vida social continua precisando, muito, de mais trabalho”.

É sugestivo do grau de entorpecimento intelectual que embala a vida interna das universidades e dos partidos políticos, que parta de uma filósofa, e não de economistas, a incisiva proposição de luta para devolver ao trabalho a centralidade que ele ainda deve ter nas relações sociais neste início de século XXI.

Pelo menos a professora Olgária Mattos está convencida disso. No fundo, é como se a filósofa decifrasse a esfinge que alimenta o silêncio dos intelectuais para dizer que o equivalente progressista do New Deal, hoje, passa pela redução da jornada de trabalho. E não apenas pela salvação planetária de bancos e apostadores do capital fictício que infectou uma parte do metabolismo social e anulou a subjetividade crítica da outra.

Leia a seguir trechos da conversa de Olgária Mattos com Carta Maior :

Risco de fascismo decorrente da anomia social
“Não creio que esse vazio de mobilização social possa redundar em um avanço do fascismo, como ocorreu na Alemanha na crise dos anos 30. Até para fascismo você precisa de mobilização. Precisa de nacionalismo, de massas em ebulição. O que temos hoje é atomização. Gente desenraizada. Note que nos EUA não foram apenas os ricos que especularam nas Bolsas e mercados financeiros. A bolha imobiliária é a expressão de um engajamento bem mais amplo na ciranda especulativa. Ela arregimentou camadas medianas e até fileiras menos remediadas. É como se o 4º Estado fosse cooptado para o jogo dos de cima. E, claro, a estrutura da sociedade não foi criada para isso”.

Democracia no Brasil
É claro que a dispersão social não explica tudo. No Brasil, por exemplo, quem se organiza consegue furar bloqueios e alcançar avanços. Se os catadores de papel se organizarem no país, eles conseguem do governo benefícios e direitos. Isso tem que ser levado em conta para se entender inexistência de uma inquietação maior. É um fato: temos canais democráticos de participação e eles certamente resultam em melhores condições de vida para quem se organizar. Não endosso a tese dos que negam tudo e defendem o quanto pior melhor: essa esquerda não consegue explicar a realidade e menos ainda agir sobre ela.

Mobralização da cultura e da universidade
O rebaixamento educacional é generalizado e dificulta que a crise tenha na cultura um espaço de reflexão e criatividade instigadora de novas soluções. Não se trata de defender uma visão elitista da universidade, ao contrário. O verdadeiro acesso e a democratização envolve certos requisitos que quando não cumpridos provocam um efeito oposto. Significa que o Brasil precisa investir pesadamente na formação e instrução de nossas crianças, na escola fundamental e no segundo grau. Ao não fazê-lo o que temos é uma “mobralização” da universidade. Um rebaixamento sob diferentes formas: o diploma universitário virou um fetiche para, supostamente, abrir portas que não se abrem; a cultura assumiu contornos de saberes episódicos, adaptados à assimilação de portadores de uma bagagem escolar mínima; predomina na vida acadêmica um individualismo entediante, no fundo não existe ambiente universitário.

Embrutecimento do tecido social e marketing político
A des-socialização não é algo irreversível, tampouco – insisto - a sociedade deixou de requerer trabalho. Muito trabalho. Muito mais do que se oferece hoje e isso deve ser combinado com cortes da jornada que potencializariam uma subjetividade solidária e emancipadora. Mas não é o que vemos hoje. O maior obstáculo a esse salto é o rebaixamento do debate político, substituído pelo marketing populista e de celebridades. O marketing viola a natureza libertadora da política. Torna reiterativo o que deveria ser criativo. Empobrece o repertório social. Infantiliza e manipula a cidadania. O resultado é o sedimentação de um bovarismo social, acredita-se no que não existe. De repente, quem ganha R$ 1.800 reais vira rico.

Estamos distantes, ainda, de uma emancipação da pobreza. Seria necessário mudanças profundas nas políticas de rendas para elevar, e não rebaixar, os critérios de emancipação social. O parto desses avanços pressupõe que a política volte a ser o espaço da liberdade e da reinvenção social. O marketing político é o oposto disso tudo. Não espanta, portanto, certa letargia diante da crise econômica atual. Mas não é irreversível.

Observações sobre o desastre econômico

RICARDO MUSSE


1. A partir dos anos 1970, os EUA introduziram paulatinamente uma série de alterações no funcionamento do sistema econômico internacional que, na prática, subverteu o modelo anterior firmado no pós-guerra. As políticas anti-cíclicas que permitiram a expansão conhecida como os “trinta anos dourados” foram desmontadas uma a uma.

Os excedentes monetários, até então sob o controle parcial dos Estados, passaram a ser geridos pelo mercado, com a concomitante redução da participação dos salários na renda nacional e dos benefícios conquistados como direitos sociais. O controle de capitais pelos Estados nacionais, outra peça chave do arcabouço anterior, cedeu lugar à livre circulação inclusive de capitais de curto prazo, propiciando os movimentos especulativos que moldam atualmente o mercado de dinheiro.

Ao longo desse processo, os Estados passaram por alterações substanciais não só com a restrição de sua participação direta como agente econômico, mas sobretudo com a redução significativa de suas atividades de planejamento e regulação.

2. Com o fim da situação de exceção, da assim chamada “regulação keynesiana”, o capitalismo retornou ao seu leito habitual. O ímpeto e a dinâmica econômica voltaram a ser ditados pelo mercado e as crises a se suceder com precisão matemática.

Para um leitor de Karl Marx os delineamentos e desdobramentos da atual crise bancária e financeira afiguram-se como uma ilustração exemplar e quase didática de sua explicação do capitalismo. A teoria do valor e o fetichismo da mercadoria expostos em O capital ressaltam que, apesar de sua origem como uma mercadoria específica, como equivalente geral, o dinheiro tende a adquirir autonomia no decorrer do processo em que salta da condição de mero mediador das trocas alçando-se à posição de centro impulsionador da circulação mercantil. No descolamento entre essas funções, em si contraditórias, encontra-se o germe das crises econômicas, precipitadas, em geral, pela correção abrupta de ativos inflados devido à lógica imanente que os descola de seu solo e substrato real.

A teoria marxista prediz ainda que um desarranjo financeiro tende a afetar a ordem econômica em suas múltiplas dimensões. A desarticulação da função “meio de pagamento” (o sistema de crédito), que o dinheiro adquire com o desenvolvimento dos mecanismos de compensação bancária, altera suas outras funções como “meio de circulação” ou como “medida de valor”. Eis por que uma crise bancária não deixa de ressoar no âmbito da produção e tende a se tornar sistêmica com a perda da medida de valor das mercadorias e das empresas, fenômeno patente na volatilidade dos mercados e das bolsas.

A crítica de Marx ao capitalismo readquire atualidade precisamente quando a prática política inspirada no marxismo passa por seu momento de maior descrédito. O paradoxo é ainda maior quando se recorda que o marxismo viveu seu apogeu político e intelectual no Ocidente no período em que a regulação estatal desmentia a linha geral de O capital.

3. No capitalismo, Estado e mercado são faces de uma mesma moeda. A política econômica predominante nas últimas décadas – inspirada no receituário proposto, entre outros, por Friedrich Hayek e Milton Friedman, e rotulada de “neoliberal” – visava desprender a lógica econômica da política, liberar o mercado das “amarras” do Estado. Esse objetivo, no entanto, uma demanda da classe capitalista assustada com o declínio das taxas de lucro, só pôde ser alcançado por meio da ação política, da conquista do Estado.

A magnitude dessa intervenção estatal sobre a esfera institucional do capitalismo, aceleradas nos governos de Margaret Thatcher e Ronald Reagan, só é comparável às modificações na esfera econômica introduzidas na década de 1930.

O desmanche da chamada economia mista (estatal e de mercado), a privatização de domínios até então públicos (da infra-estrutura à previdência, passando pela saúde e pela educação), a desregulamentação dos mercados de trabalho, de mercadorias e de dinheiro foram obtidos por meio de uma série deliberada e coordenada de ações extra-econômicas. Semelhante mudança no padrão de acumulação exigiu uma política agressiva de enfraquecimento dos sindicatos e do poder social da classe trabalhadora.

A manutenção desse modelo de capitalismo pressupõe a continuidade dessa modalidade de ação política, assentada numa militância ativa e sobretudo numa hegemonia intelectual que está sendo seriamente abalada pelos desdobramentos da atual crise financeira.

4. Não é casual que o epicentro da crise esteja localizado nos Estados Unidos e na Inglaterra. Trata-se dos dois países que foram mais longe na desregulamentação do capitalismo. Apesar da vitória incontestável do poder norte-americano sobre o socialismo estatal do Leste europeu, a “nova ordem mundial” aderiu ao modelo preconizado com parcimônia.

Na área econômica unificada pela adoção do euro como moeda comum, apesar da insistência tanto dos conservadores como da social-democracia, o Estado do bem-estar social foi pouco modificado, ficando as políticas de desregulamentação concentradas na esfera financeira.

A reinserção da China no mercado mundial e seu espantoso crescimento econômico nas duas últimas décadas – a manifestação mais peremptória do “capitalismo globalizado” – transformaram a sociedade chinesa no máximo numa economia mista, com uma combinação peculiar de livre mercado e intervenção estatal comandada e controlada pela camada dirigente do Partido Comunista.

Na América Latina, sua implantação tardia (com a exceção do Chile), nos anos 1990, por meio das terapias de choque do “consenso de Washington” redundou em fracasso. O malogro foi tão grande que impulsionou o acesso ao poder de políticos e partidos situados à esquerda do espectro político. Se não conseguiram reverter as reformas implementadas, tampouco levaram adiante com o mesmo ímpeto o receituário neoliberal.

5. O colapso desse modelo põe em xeque a hegemonia dos EUA no sistema inter-estatal. Nesse cenário, amplifica-se a contradição latente, que perpassa a história norte-americana ao longo do século XX, entre a república e o império. A crise debilita o arranjo que permitiu a combinação de uma sociedade afluente, com um nível de consumo exacerbado e uma relativa democratização da vida pública, no plano interno, e o intervencionismo militar, econômico e político, no qual não estiveram ausentes até mesmo momentos de ocupação e domínio neocolonial, no plano externo.

A próxima eleição presidencial opõe duas vias distintas para a reconstituição do poder norte-americano: a ênfase na reforma do ambiente econômico e social, conforme o programa de Barack Obama, ou a tentativa de resolver os impasses internos intensificando a intervenção externa, proposta por John McCain, com a sugestão de pequenas alterações na dosagem adotada durante os oito anos do governo de George W. Bush.

6. Os detentores do capital, no mundo todo, vivem um momento de perplexidade. A hegemonia norte-americana tem uma de suas fontes no reconhecimento de sua ação, extremamente eficaz nos últimos 70 anos, em defesa, para além das fronteiras nacionais, dos interesses da classe capitalista. Uma legitimidade conquistada com o uso, sem escrúpulos, de todos os meios possíveis seja no campo econômico, político, cultural ou militar. Nesse sentido, seu engajamento e sua liderança na guerra contra o comunismo internacional pode ser visto como apenas um momento de sua condição de “garantia em última instância do capital”.

Só isso explica porque apesar da insolvência que perpassa o sistema bancário norte-americano e do tamanho descomunal de seus dois déficits – o de transações correntes e o público –, o dólar se valoriza ante as demais moedas, ao exercer a função de reserva de valor e instaurar-se como o último porto seguro para capitais de todas as nacionalidades.

O provável declínio dos EUA apresenta-se assim como uma espécie de efeito colateral inesperado de sua irretorquível vitória sobre o socialismo estatal do Leste Europeu.

7. O anunciado giro na direção do fortalecimento do Estado, resgatando modalidades explícitas de capitalismo estatal; o retorno de políticas anti-cíclicas, de inspiração neokeynesianas; a retomada de práticas regulatórias não só no âmbito financeiro, demandas assumidas hoje pela classe capitalista e até mesmo por políticos conservadores, surgem como uma exigência técnica, como uma operação de restabelecimento da racionalidade econômica.

Esse olhar retrospectivo para o arsenal profilático desenvolvido a partir da crise de 1929 recusa-se a ver, no entanto, que tais procedimentos originaram-se no âmbito e mediados por um intenso confronto político no qual a classe trabalhadora exerceu o papel de protagonista (mesmo quando derrotada).

No contexto atual, a representação política dos trabalhadores, desacreditando da viabilidade do socialismo, defende, entretanto, apenas modalidades de capitalismo reformado e versões mitigadas de capitalismo de Estado. Diante desse encurtamento do horizonte político, resta a questão crucial: o que irá galvanizar as massas de atuais e futuros deserdados do mundo?

Ricardo Musse é professor no departamento de sociologia da USP.