sexta-feira, 31 de outubro de 2008
Centrais Sindicais realizam ato contra a criminalização dos movimentos no RS
As Centrais Sindicais CUT, CTB, Conlutas, Intersindical, juntamente com a CMS (Coordenação dos Movimentos Sociais), realizam nesta segunda-feira (3/11) um Ato Político contra a “Criminalização dos Movimentos Sociais no Rio Grande do Sul”.
O ato acontece às 14h, na Assembléia Legislativa, e contará também com a presença de parlamentares e intelectuais. A atividade é mais uma resposta às investidas do governo Yeda Crusius e de setores do Poder Judiciário, que atentam contra o direito de livre manifestação da população, incluindo movimentos como o MST.
quinta-feira, 30 de outubro de 2008
O “New Deal” de hoje passa pela redução da jornada de trabalho
É sugestivo do grau de entorpecimento intelectual que embala a vida interna das universidades e dos partidos políticos, que parta de uma filósofa, e não de economistas, a incisiva proposição de luta para devolver ao trabalho a centralidade que ele ainda deve ter nas relações sociais neste início de século XXI. Leia entrevista com Olgária Mattos.
Redação - Carta Maior
De onde pode partir a resistência a uma “solução conservadora” para a crise econômica mundial? Como evitar que os mesmos fios esgarçados das finanças desreguladas acabem por cerzir uma nova trama de reordenamento, tão ou mais regressiva que aquela urdida pela supremacia da lógica financeira sobre todas as dimensões da vida social ? Em que medida a subjetividade entorpecida por três décadas de anestesia mercadista será capaz de superar o funeral da esperança e ressuscitar valores, e práticas, afinados com outro registro histórico? Essas e outras perguntas esbarram numa parede de ceticismo mais ou menos generalizado que circunda o ambiente intelectual brasileiro nesse momento. Dentro e fora da academia.
A filósofa Olgária Mattos, professora titular da Universidade de São Paulo, não desafina o cantochão com placebos de um otimismo dos contentes, mas tampouco se entrega ao descompromisso niilista dos que se divorciaram da História para vocalizar crônicas de um vôo cego.
Pessimista na reflexão, mas aguerrida nos requisitos à ação, Olgária não faz rodeios e vai ao ponto nesses dias em que as palavras capitalismo e crise voltaram a se combinar nas manchetes da grande imprensa mas, paradoxalmente, estão ausentes ou rebaixadas nos debates acadêmicos.
“A diferença crucial no enfrentamento dessa crise em comparação com avanços obtidos em 1929”, diz ela em entrevista a Carta Maior, “decorre do rebaixamento ao qual o trabalho e os trabalhadores foram relegados na arquitetura da sociedade em nosso tempo”.
O diagnóstico não é novo. Mas ao contrário dos que enxergam nisso quase um fim da história, à gauche, por conta da inexistência de um sujeito coletivo capaz de injetar dialética no absolutismo do presente, Olgária rebate: “Claro que o trabalho continua relevante para a existência de uma sociedade virtuosa”, e saraiva uma pergunta atrás da outra: “Você tem idéia de quantas pessoas são necessárias para cuidar de um idoso durante 24 horas? Quantas vagas teriam que ser abertas se fossemos, de fato, educar as nossas crianças, e ampará-las desde a tenra infância, com uma formação republicana de qualidade? E, sobretudo”, conclui sem hesitar diante dos desdobramentos do seu raciocínio, “será que nós temos idéia do que representaria socialmente a ativação desse conjunto de políticas públicas associada a uma redução da jornada de trabalho; e do efeito que essa disseminação do emprego e do tempo livre teria sobre o lazer e a participação política?”
Outubro de 1929 versus outubro de 2008
Cenário de uma das crises mais virulentas da história do capitalismo - insistentemente evocada nos dias de hoje - o contraponto dos anos 30 , mencionado pela professora Olgária Mattos, ficou na memória como a “Década do Diabo”; aquela que começou com uma Depressão e terminou em uma Guerra Mundial. A rememoração dos indicadores sociais daquele período confirma a pertinência do epíteto, revelando uma ciranda de quebradeiras e desemprego que teve seu ponto de partida no “crash” da Bolsa de Nova Iorque, em outubro de 29. Nove mil bancos faliram então nos EUA; 25% da população economicamente ativa foi jogada no desemprego.
Ondas de propagação da crise varreram o planeta. A retração da liquidez na Alemanha foi tal que o escambo terminou oficializado em algumas regiões; o desemprego atingiu 60% da juventude alemã e pavimentou o recrutamento das milícias nazistas. Na França, a retração da demanda gerou uma deflação destrutiva que reduziu em 40% o preço do trigo, inibindo a produção. Na Inglaterra, milhares de mineiros, colhedores de algodão, jovens e velhos ocuparam as ruas espetando acampamentos de desempregados em vários pontos de Londres. No mundo todo, mais de 30 milhões de trabalhadores foram excluídos do sistema econômico disseminando revolta, fome e desalento. Par se ter uma idéia do que isso significou, a OIT prevê que a crise atual poderá gerar 20 milhões de desempregados num mundo com demografia várias vezes superior à de 29.
Mas se a intervenção pública se mostra mais resoluta hoje, comparada à timidez dos governos no início da crise de 29, o pano de fundo político é flagrantemente desfavorável a um reordenamento social emancipador. A sociedade dos anos 30 emparedou a hesitação dos seus dirigentes num torniquete progressista de muitas voltas feito de engajamento sindical; expansão das idéias socialistas; efervescente agitação intelectual e artística.
“O trabalho organizava o tecido social”, reafirma a professora Olgária. “A criação de laços duradouros entre operários de uma mesma base injetava confiança, solidariedade e esperança em todo o corpo social e não apenas nas corporações. A esperança é parteira do futuro; como é que você pode almejar outro futuro sem esperança e como ter esperança se não dispõe de laços de auto-confiança, necessariamente coletivos? Havia assim uma percepção de responsabilidade social, distinta da desresponsabilização que predomina hoje e contamina todos os interstícios da vida. Vá ao metrô e veja”, dispara Olgária Mattos: ‘jovens fingem que estão dormindo para não ceder lugar a um idoso. É só a ponta do icebergue. Daí a dissociação entre o que se gostaria que fosse a ação política diante da crise e o comportamento de indivíduos atomizados, partidos por formas precárias de inserção no mercado e na vida".
Eis a razão, retoma a filósofa, “do descompasso entre a crise e as respostas a ela; entre 1929 e 2008. Mas, repito, não é verdade que o trabalho deixou de ser necessário; ele foi descartado por uma estrutura econômica e de poder que redobrou o grau de exploração sobre uma parcela dos trabalhadores. A vida social continua precisando, muito, de mais trabalho”.
É sugestivo do grau de entorpecimento intelectual que embala a vida interna das universidades e dos partidos políticos, que parta de uma filósofa, e não de economistas, a incisiva proposição de luta para devolver ao trabalho a centralidade que ele ainda deve ter nas relações sociais neste início de século XXI.
Pelo menos a professora Olgária Mattos está convencida disso. No fundo, é como se a filósofa decifrasse a esfinge que alimenta o silêncio dos intelectuais para dizer que o equivalente progressista do New Deal, hoje, passa pela redução da jornada de trabalho. E não apenas pela salvação planetária de bancos e apostadores do capital fictício que infectou uma parte do metabolismo social e anulou a subjetividade crítica da outra.
Leia a seguir trechos da conversa de Olgária Mattos com Carta Maior :
Risco de fascismo decorrente da anomia social
“Não creio que esse vazio de mobilização social possa redundar em um avanço do fascismo, como ocorreu na Alemanha na crise dos anos 30. Até para fascismo você precisa de mobilização. Precisa de nacionalismo, de massas em ebulição. O que temos hoje é atomização. Gente desenraizada. Note que nos EUA não foram apenas os ricos que especularam nas Bolsas e mercados financeiros. A bolha imobiliária é a expressão de um engajamento bem mais amplo na ciranda especulativa. Ela arregimentou camadas medianas e até fileiras menos remediadas. É como se o 4º Estado fosse cooptado para o jogo dos de cima. E, claro, a estrutura da sociedade não foi criada para isso”.
Democracia no Brasil
É claro que a dispersão social não explica tudo. No Brasil, por exemplo, quem se organiza consegue furar bloqueios e alcançar avanços. Se os catadores de papel se organizarem no país, eles conseguem do governo benefícios e direitos. Isso tem que ser levado em conta para se entender inexistência de uma inquietação maior. É um fato: temos canais democráticos de participação e eles certamente resultam em melhores condições de vida para quem se organizar. Não endosso a tese dos que negam tudo e defendem o quanto pior melhor: essa esquerda não consegue explicar a realidade e menos ainda agir sobre ela.
Mobralização da cultura e da universidade
O rebaixamento educacional é generalizado e dificulta que a crise tenha na cultura um espaço de reflexão e criatividade instigadora de novas soluções. Não se trata de defender uma visão elitista da universidade, ao contrário. O verdadeiro acesso e a democratização envolve certos requisitos que quando não cumpridos provocam um efeito oposto. Significa que o Brasil precisa investir pesadamente na formação e instrução de nossas crianças, na escola fundamental e no segundo grau. Ao não fazê-lo o que temos é uma “mobralização” da universidade. Um rebaixamento sob diferentes formas: o diploma universitário virou um fetiche para, supostamente, abrir portas que não se abrem; a cultura assumiu contornos de saberes episódicos, adaptados à assimilação de portadores de uma bagagem escolar mínima; predomina na vida acadêmica um individualismo entediante, no fundo não existe ambiente universitário.
Embrutecimento do tecido social e marketing político
A des-socialização não é algo irreversível, tampouco – insisto - a sociedade deixou de requerer trabalho. Muito trabalho. Muito mais do que se oferece hoje e isso deve ser combinado com cortes da jornada que potencializariam uma subjetividade solidária e emancipadora. Mas não é o que vemos hoje. O maior obstáculo a esse salto é o rebaixamento do debate político, substituído pelo marketing populista e de celebridades. O marketing viola a natureza libertadora da política. Torna reiterativo o que deveria ser criativo. Empobrece o repertório social. Infantiliza e manipula a cidadania. O resultado é o sedimentação de um bovarismo social, acredita-se no que não existe. De repente, quem ganha R$ 1.800 reais vira rico.
Estamos distantes, ainda, de uma emancipação da pobreza. Seria necessário mudanças profundas nas políticas de rendas para elevar, e não rebaixar, os critérios de emancipação social. O parto desses avanços pressupõe que a política volte a ser o espaço da liberdade e da reinvenção social. O marketing político é o oposto disso tudo. Não espanta, portanto, certa letargia diante da crise econômica atual. Mas não é irreversível.
Observações sobre o desastre econômico
RICARDO MUSSE
Os excedentes monetários, até então sob o controle parcial dos Estados, passaram a ser geridos pelo mercado, com a concomitante redução da participação dos salários na renda nacional e dos benefícios conquistados como direitos sociais. O controle de capitais pelos Estados nacionais, outra peça chave do arcabouço anterior, cedeu lugar à livre circulação inclusive de capitais de curto prazo, propiciando os movimentos especulativos que moldam atualmente o mercado de dinheiro.
Ao longo desse processo, os Estados passaram por alterações substanciais não só com a restrição de sua participação direta como agente econômico, mas sobretudo com a redução significativa de suas atividades de planejamento e regulação.
2. Com o fim da situação de exceção, da assim chamada “regulação keynesiana”, o capitalismo retornou ao seu leito habitual. O ímpeto e a dinâmica econômica voltaram a ser ditados pelo mercado e as crises a se suceder com precisão matemática.
Para um leitor de Karl Marx os delineamentos e desdobramentos da atual crise bancária e financeira afiguram-se como uma ilustração exemplar e quase didática de sua explicação do capitalismo. A teoria do valor e o fetichismo da mercadoria expostos em O capital ressaltam que, apesar de sua origem como uma mercadoria específica, como equivalente geral, o dinheiro tende a adquirir autonomia no decorrer do processo em que salta da condição de mero mediador das trocas alçando-se à posição de centro impulsionador da circulação mercantil. No descolamento entre essas funções, em si contraditórias, encontra-se o germe das crises econômicas, precipitadas, em geral, pela correção abrupta de ativos inflados devido à lógica imanente que os descola de seu solo e substrato real.
A teoria marxista prediz ainda que um desarranjo financeiro tende a afetar a ordem econômica em suas múltiplas dimensões. A desarticulação da função “meio de pagamento” (o sistema de crédito), que o dinheiro adquire com o desenvolvimento dos mecanismos de compensação bancária, altera suas outras funções como “meio de circulação” ou como “medida de valor”. Eis por que uma crise bancária não deixa de ressoar no âmbito da produção e tende a se tornar sistêmica com a perda da medida de valor das mercadorias e das empresas, fenômeno patente na volatilidade dos mercados e das bolsas.
A crítica de Marx ao capitalismo readquire atualidade precisamente quando a prática política inspirada no marxismo passa por seu momento de maior descrédito. O paradoxo é ainda maior quando se recorda que o marxismo viveu seu apogeu político e intelectual no Ocidente no período em que a regulação estatal desmentia a linha geral de O capital.
3. No capitalismo, Estado e mercado são faces de uma mesma moeda. A política econômica predominante nas últimas décadas – inspirada no receituário proposto, entre outros, por Friedrich Hayek e Milton Friedman, e rotulada de “neoliberal” – visava desprender a lógica econômica da política, liberar o mercado das “amarras” do Estado. Esse objetivo, no entanto, uma demanda da classe capitalista assustada com o declínio das taxas de lucro, só pôde ser alcançado por meio da ação política, da conquista do Estado.
A magnitude dessa intervenção estatal sobre a esfera institucional do capitalismo, aceleradas nos governos de Margaret Thatcher e Ronald Reagan, só é comparável às modificações na esfera econômica introduzidas na década de 1930.
O desmanche da chamada economia mista (estatal e de mercado), a privatização de domínios até então públicos (da infra-estrutura à previdência, passando pela saúde e pela educação), a desregulamentação dos mercados de trabalho, de mercadorias e de dinheiro foram obtidos por meio de uma série deliberada e coordenada de ações extra-econômicas. Semelhante mudança no padrão de acumulação exigiu uma política agressiva de enfraquecimento dos sindicatos e do poder social da classe trabalhadora.
A manutenção desse modelo de capitalismo pressupõe a continuidade dessa modalidade de ação política, assentada numa militância ativa e sobretudo numa hegemonia intelectual que está sendo seriamente abalada pelos desdobramentos da atual crise financeira.
4. Não é casual que o epicentro da crise esteja localizado nos Estados Unidos e na Inglaterra. Trata-se dos dois países que foram mais longe na desregulamentação do capitalismo. Apesar da vitória incontestável do poder norte-americano sobre o socialismo estatal do Leste europeu, a “nova ordem mundial” aderiu ao modelo preconizado com parcimônia.
Na área econômica unificada pela adoção do euro como moeda comum, apesar da insistência tanto dos conservadores como da social-democracia, o Estado do bem-estar social foi pouco modificado, ficando as políticas de desregulamentação concentradas na esfera financeira.
A reinserção da China no mercado mundial e seu espantoso crescimento econômico nas duas últimas décadas – a manifestação mais peremptória do “capitalismo globalizado” – transformaram a sociedade chinesa no máximo numa economia mista, com uma combinação peculiar de livre mercado e intervenção estatal comandada e controlada pela camada dirigente do Partido Comunista.
Na América Latina, sua implantação tardia (com a exceção do Chile), nos anos 1990, por meio das terapias de choque do “consenso de Washington” redundou
5. O colapso desse modelo põe em xeque a hegemonia dos EUA no sistema inter-estatal. Nesse cenário, amplifica-se a contradição latente, que perpassa a história norte-americana ao longo do século XX, entre a república e o império. A crise debilita o arranjo que permitiu a combinação de uma sociedade afluente, com um nível de consumo exacerbado e uma relativa democratização da vida pública, no plano interno, e o intervencionismo militar, econômico e político, no qual não estiveram ausentes até mesmo momentos de ocupação e domínio neocolonial, no plano externo.
A próxima eleição presidencial opõe duas vias distintas para a reconstituição do poder norte-americano: a ênfase na reforma do ambiente econômico e social, conforme o programa de Barack Obama, ou a tentativa de resolver os impasses internos intensificando a intervenção externa, proposta por John McCain, com a sugestão de pequenas alterações na dosagem adotada durante os oito anos do governo de George W. Bush.
6. Os detentores do capital, no mundo todo, vivem um momento de perplexidade. A hegemonia norte-americana tem uma de suas fontes no reconhecimento de sua ação, extremamente eficaz nos últimos 70 anos, em defesa, para além das fronteiras nacionais, dos interesses da classe capitalista. Uma legitimidade conquistada com o uso, sem escrúpulos, de todos os meios possíveis seja no campo econômico, político, cultural ou militar. Nesse sentido, seu engajamento e sua liderança na guerra contra o comunismo internacional pode ser visto como apenas um momento de sua condição de “garantia em última instância do capital”.
Só isso explica porque apesar da insolvência que perpassa o sistema bancário norte-americano e do tamanho descomunal de seus dois déficits – o de transações correntes e o público –, o dólar se valoriza ante as demais moedas, ao exercer a função de reserva de valor e instaurar-se como o último porto seguro para capitais de todas as nacionalidades.
O provável declínio dos EUA apresenta-se assim como uma espécie de efeito colateral inesperado de sua irretorquível vitória sobre o socialismo estatal do Leste Europeu.
7. O anunciado giro na direção do fortalecimento do Estado, resgatando modalidades explícitas de capitalismo estatal; o retorno de políticas anti-cíclicas, de inspiração neokeynesianas; a retomada de práticas regulatórias não só no âmbito financeiro, demandas assumidas hoje pela classe capitalista e até mesmo por políticos conservadores, surgem como uma exigência técnica, como uma operação de restabelecimento da racionalidade econômica.
Esse olhar retrospectivo para o arsenal profilático desenvolvido a partir da crise de 1929 recusa-se a ver, no entanto, que tais procedimentos originaram-se no âmbito e mediados por um intenso confronto político no qual a classe trabalhadora exerceu o papel de protagonista (mesmo quando derrotada).
No contexto atual, a representação política dos trabalhadores, desacreditando da viabilidade do socialismo, defende, entretanto, apenas modalidades de capitalismo reformado e versões mitigadas de capitalismo de Estado. Diante desse encurtamento do horizonte político, resta a questão crucial: o que irá galvanizar as massas de atuais e futuros deserdados do mundo?
Ricardo Musse é professor no departamento de sociologia da USP.
quarta-feira, 29 de outubro de 2008
Potências imperialistas mostram sua impotência diante da escalada da crise
Escrito por Plínio de Arruda Sampaio Jr. | |
28-Out-2008 | |
Correio da Cidadania - http://www.correiocidadania.com.br/content/view/2510/9/ A crise financeira que eclodiu com a intensidade de um furacão tropical nas últimas semanas gerou um estado de absoluta incerteza em relação ao futuro da ordem global. A desconfiança na solidez das instituições financeiras, provocada pela quebra em cadeia de bancos que até há pouco pareciam inabaláveis, desencadeou um colapso generalizado do crédito que tende a desorganizar o sistema capitalista mundial. Ao expor a extraordinária fragilidade do sistema monetário internacional e os precários fundamentos que sustentam a globalização dos negócios, a crise pôs por terra os parâmetros que balizavam os cálculos capitalistas, deixando o mundo sob a ameaça de uma depressão sem precedentes.
A origem dos problemas encontra-se no processo de liberalização que solapou as restrições institucionais que impunham limites à atuação do capital financeiro, com o objetivo de minimizar os impactos perversos da livre concorrência sobre a economia popular. Ao levar ao paroxismo a liberdade de movimento dos capitais e a desregulamentação dos mercados financeiros, os Estados Unidos e os organismos financeiros internacionais criaram condições ideais para o pleno desenvolvimento da especulação produtiva e financeira em escala global.
O neoliberalismo premiou os especuladores mais ousados, desencadeando uma concorrência desenfreada pelo lucro fácil que só poderia terminar em catástrofe. O resultado era previsível: a valorização do capital fictício descolou-se completamente da valorização produtiva e a acumulação produtiva descolou-se completamente da capacidade de consumo da sociedade. Em poucas palavras, o mundo encontra-se diante de uma clássica crise de superprodução, cuja solução demandará uma brutal queima de capital, produtivo e financeiro, com tudo o que vem junto: desemprego, crise social e instabilidade política.
Em relação às inúmeras turbulências que marcaram a conturbada trajetória das finanças internacionais na era neoliberal, há pelo menos duas mudanças significativas no caráter da crise atual, ambas convergindo para a configuração de uma crise geral – um fenômeno estrutural que terá repercussões de longo alcance.
Em primeiro lugar, a profundidade e a extensão dos desequilíbrios que precisam ser digeridos superam as crises anteriores em todas as suas dimensões e só são comparáveis à hecatombe que desarticulou o sistema monetário internacional nos anos 30. Como todas as economias nacionais estão fortemente interconectadas entre si e fortemente dependentes do que ocorre na economia norte-americana, não há como conter o processo de disseminação da crise sem subverter os alicerces da ordem econômica internacional montada nas últimas quatro décadas, sob a batuta dos próprios Estados Unidos.
Em segundo lugar, a impotência do poder político para lidar com a situação não permite que se vislumbre uma solução rápida e indolor para o impasse da economia mundial. A superação dos entraves que bloqueiam a acumulação de capital exige uma ação coordenada, de caráter transnacional, envolvendo todas as dimensões da vida econômica - financeira, monetária, comercial e produtiva -, cuja possibilidade de concretização, até o momento, sequer foi cogitada. Os Estados Unidos, que deveriam liderar este processo, têm se revelado totalmente impotentes para enfrentar a situação e não há o menor indício de que alguma outra potência imperialista possa assumir o seu papel.
Enganam-se os que imaginam que a recente atuação conjunta dos governos dos países desenvolvidos para salvar os bancos seja um sintoma de que o poder público começa a sair da inércia. Por enquanto os Estados têm se restringido a uma atuação reativa, sempre atrás dos acontecimentos, comandada pela histeria desesperada dos "mercados" – eufemismo para designar os interesses do capital financeiro.
Não é impossível que o esforço para "administrar" a crise protele o desmoronamento dos mercados financeiros por mais algum tempo, dando para muitos a impressão de que os problemas poderão ser contornados sem maiores traumatismos. Ainda que a possibilidade de um colapso espetacular do sistema monetário internacional não possa ser descartada, o mais provável é que o desdobramento da crise se arraste por tempo indefinido, alternando momentos de pânico com momentos de relativo alívio, numa lenta agonia.
O fato é que a economia mundial está a léguas de qualquer tipo de ação "reguladora", capaz de pôr ordem na anarquia da iniciativa privada e de conter o caráter ultra-regressivo do padrão de acumulação neoliberal – as causas últimas da crise. Os que confundem a estatização do sistema financeiro em curso com a volta da regulação de tipo keynesiana tomam a nuvem por Juno, pois não é o Estado que está comandando o capital, mas exatamente o contrário, o grande capital que está comandando o Estado.
Em nome da necessidade inquestionável de evitar uma crise sistêmica da economia mundial, de efeitos potenciais catastróficos, a ação dos Estados capitalistas está promovendo o maior ataque à economia popular de que se tem notícia na história. Os recursos que até ontem faltavam para financiar as políticas públicas, agora sobram para socorrer os bancos, sem que nada garanta, diga-se de passagem, que o cataclismo seja evitado. Para se aquilatar a magnitude de riqueza transferida para o grande capital, basta lembrar que, no intervalo de poucas semanas, os maiores bancos do mundo receberam um montante de recursos públicos equivalente a vários PIBs anuais do Brasil.
Além da ausência de uma potência hegemônica em condições de liderar a reorganização do sistema capitalista mundial, a crise atual apresenta outra importante diferença em relação ao contexto histórico da crise do liberalismo que marcou toda a primeira metade do século XX. A complexa teia de relações comerciais e produtivas que unifica o sistema capitalista mundial bloqueia a possibilidade de soluções "nacionais" para a crise global.
Iludem-se, portanto, aqueles que apostam na eventualidade de um retorno a Keynes. As bases objetivas e subjetivas que davam sustentação ao arcabouço de política econômica baseado em um regime central de acumulação encontram-se pura e simplesmente corroídas. O grau de socialização das forças produtivas já alcançado pelo desenvolvimento capitalista não comporta a possibilidade de um recuo "nacional", pois isto implicaria grande perda de eficiência econômica (devido à menor economia de escala), representando uma inusitada regressão na divisão social do trabalho. Além disso, o controle absoluto do Estado capitalista pelos grandes conglomerados internacionais torna muito pouco provável a possibilidade de um recuo protecionista, pois o grau de internacionalização do capital é incompatível com o espaço econômico nacional como horizonte de sua reprodução ampliada.
Sabe-se pela tumultuada história do capitalismo que, enquanto não houver uma alternativa a este regime, de uma ou de outra maneira, mais tempo menos tempo, com maior ou menor sacrifício, as condições para a retomada da acumulação de capital serão restauradas um dia. Qualquer que seja o caminho para a superação da crise, uma coisa é certa. Na ausência de forças capazes de deter a fúria especulativa do grande capital, o capitalismo tende a ficar ainda mais regressivo e predatório, pois é gigantesco o volume de capital sobreacumulado que precisa ser digerido antes que as condições para a reprodução ampliada do capital sejam restabelecidas. E, pelas tendências em curso, tudo se encaminha para uma socialização dos prejuízos sem precedentes em escala global. No caso da crise do liberalismo, que desarticulou a divisão internacional do trabalho que gravitava em torno da economia inglesa, o mundo teve de passar por duas guerras mundiais, duas revoluções socialistas e uma depressão de longa duração antes que o sistema capitalista mundial fosse reorganizado – um processo que durou cerca de meio século.
Ao contrário do que ocorreu nas inúmeras turbulências que marcaram a era neoliberal, desta vez a população norte-americana não será poupada de sacrifícios. Instigados pela ortodoxia neoliberal e pela grande mídia a acreditarem que o mundo havia entrado em uma era de prosperidade sem fim, trabalhadores e aposentados apostaram suas poupanças suadas – e muitos endividaram além de suas posses - na esperança de ganhos patrimoniais meteóricos. Os que não pularam fora da ciranda especulativa a tempo, acabaram com o mico na mão e, agora, se encontram na iminência de ficarem sem casa, sem aposentadoria e sem emprego. É bem pouco provável que aceitem a nova situação docilmente.
Elo fraco do sistema capitalista mundial e zona de influência dos Estados Unidos, a América Latina sentirá o impacto da crise de maneira redobrada. A crise será transmitida pelos processos históricos tradicionais - queda do comércio internacional, contração dos preços das commodities, paralisia dos fluxos de crédito e investimentos, fuga de capitais, crises fiscais e financeiras, forte instabilidade da moeda - bem como por processos novos -, paralisação do fluxo de remessas dos imigrantes, exacerbação dos obstáculos das economias desenvolvidas à imigração, intensificação do racismo contra os povos do chamado terceiro mundo, inversão do fluxo de imigrações. Se não houver uma pronta reação dos países da região, centralizando o câmbio e desatrelando o sistema de financiamento interno do mercado financeiro internacional, os efeitos serão fulminantes.
A forma imediata assumida pela crise não deve destoar do padrão conhecido, combinando estrangulamento cambial, desorganização das finanças, instabilidade monetária, estagnação econômica, quebra de empresas e ampliação do desemprego. Instaurado o caos econômico, as pressões do imperialismo para despejar o ônus da crise nas economias da região serão cada vez maiores. Ao encerrar o efêmero ciclo de crescimento que tinha interrompido três décadas de estagnação, a ordem econômica internacional recolocará toda a periferia latino-americana na rotina de Sísifo do ajuste econômico permanente. O novo marco histórico tende a acelerar o processo de reversão neocolonial em curso.
A crise do ciclo expansivo neoliberal aprofundará a barbárie capitalista. Abre-se um período de grandes convulsões sociais e acirramento das rivalidades entre os Estados nacionais. Nos marcos da ordem burguesa, o futuro é sombrio. Mais do que nunca, o regime do capital virá acompanhado de crescente instabilidade econômica, absoluta irracionalidade na utilização da riqueza, gritantes desigualdades sociais, escalada da prepotência imperialista e inexorável comprometimento da democracia.
Plínio de Arruda Sampaio Jr., economista, é professor do Instituto de Economia da UNICAMP. |
1º Ciclo de Debates Outubro Vermelho
Dia 01/11/08: A esquerda radical nas eleições 2008
Mesa: Baltazar (candidato a vereador pelo PSOL) e Matheus (professor de história do Ensino Médio e da APEOESP)
Dia 08/11/08: A conjuntura pós-eleitoral no Brasil
Mesa: Rui Polly (ambientalista e do diretório estadual do P-SoL) e Kennedy (professor de sociologia do Ensino Médio e do Sindicato dos Sociólogos)
Dia 15/11/08: A eleição como ferramenta política para a revolução no Brasil e perspectivas
Mesa: Plínio de Arruda Sampaio (diretor do jornal Correio da Cidadania e do diretório nacional do P-Sol)
Lugar: Sindicato dos Correios, Rua Canuto do Val n.169 (Perto do Metrô Santa Cecília)
Hora: 17:00hs.
terça-feira, 28 de outubro de 2008
"O MST recriou a escola"
Sistema de educação paralelo, como se costuma definir as escolas itinerantes do MST, é um modo de dizer diante da "falta de melhor denominação para a concepção sistêmica de todo o processo educativo que singulariza o MST".
Para o filósofo e professor aposentado da USP, Paulo Arantes, "sem terra, e tudo o mais que se refere aos mínimos de uma vida civilizada, o MST foi reinventando um novo sujeito, que acabou recriando também a Escola". Uma escola para formar o trabalhador enquanto agente de sua própria emancipação, "escapando da condição de máquina de produzir mais valia neste grande moinho de gastar gente, como Darcy Ribeiro definiu o Brasil".
A educação popular - que tem como ícone a Escola Nacional Florestan Fernandes -, a perda de rumo da esquerda intelectual brasileira e o ensino de filosofia no País estão contemplados nesta análise do autor de uma respeitável obra, que inclui "Zero à Esquerda", "O Fio da Meada" e o recente "Extinção", entre outros.
A entrevista foi realizada e veiculada pelo Adverso, publicação da Associação dos Docentes da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).
O encontro histórico da USP e do MST teria se dado na figura da Escola Nacional Florestan Fernandes. Por que o senhor se refere a esse fato como “confluência tardia” e “desencontro histórico”?
Se havia um encontro marcado, a USP não compareceu. Seria melhor especificar de saída o que estamos entendendo por USP. Seu embrião, em 1934, foi a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, a agregação original de saberes que melhor encarnava o espírito da instituição universitária, uma real novidade entre nós. Refiro-me ao corte europeu de sua concepção, reunindo ensino e pesquisa numa ambiência de livre exame, ciência pura e desinteressada. O conjunto impregnado por um sentimento novo de relevância cultural e, por extensão, social. Afinal, era a década de 30, quando o País parecia estar de cabeça para baixo.
A oligarquia paulista acabou gerando um ambiente “formador” desta mesma elite pela cristalização de um pensamento radical de classe média. Como Antonio Candido chamou aquela primeira visão não-aristocrática do Brasil, baseada no estudo da recém descoberta “realidade” do País. Clima estudioso, animado por uma energia política que não precisava ser propriamente revolucionária para encaminhar num sentido progressista aqueles novos técnicos de sua própria inteligência – era assim que os via Mário de Andrade. Desse novo rumo brotou o encontro da ciência social com as classes populares, não só as que estavam entrando em cena, como as que a modernização deixara à beira do caminho.
Quando o MST deu o nome de Florestan à sua Escola Nacional, é bem possível que uma espécie de sexto sentido histórico o tenha guiado até àquele vínculo entre estudo exigente e empatia com os grupos oprimidos e marginalizados. Certamente no intuito de reativá-lo num patamar à altura dos novos tempos. Mas nossa faculdade foi ficando para trás: quanto mais se especializava e profissionalizava no sentido de mera prestadora de serviços culturais, a adversidade social crescente conferia outra dimensão de combate e pensamento a um movimento social do porte do MST. O reencontro anunciado pela escolha do nome revelou-se muito mais simbólico do que efetivo, muito mais uma evocação de um elo perdido do que o fio de uma meada enfim retomada.
A tradição crítica iniciada nos anos 30 se encerrara de vez, pouco antes do seu mais legítimo destinatário entrar em campo em meados dos anos 80, o MST. Enquanto um crescia, a outra definhava. Esse desencontro verdadeiramente histórico é fruto de uma construção nacional que não aconteceu. Como um sistema intelectual-popular não se formou, as participações individuais, mesmo as mais empenhadas, regrediram à condição de manifestações avulsas de compromisso pessoal.
O que diferencia o MST dos demais movimentos sociais brasileiros? E que sistema de educação paralelo é esse criado por eles?
Paralelo é modo de dizer, na falta de melhor denominação para a concepção sistêmica de todo o processo educativo que singulariza o MST. Não conheço nada que sequer se aproxime de toda a elaboração do movimento a respeito. Pelo menos desde a ruptura popular que o nome de Paulo Freire simboliza não se via tamanha centralidade da Pedagogia, em seu sentido transformador amplo, na formulação e condução de uma política de emancipação social através da luta pela terra. A educação como “formação” (Bildung) - na acepção mais substantiva do termo - acompanha em profundidade cada uma das etapas de um dos lemas estratégicos do Movimento: ocupar, produzir, resistir. A impressão de “sistema paralelo de educação”, do ensino fundamental até os convênios com as universidades menos preconceituosas, talvez advenha da percepção de que tudo se passa como se, nesta centralidade da instrução na luta de uma classe despossuída, encontrássemos a prefiguração de uma sociedade nacional e popular que ainda relutasse em abandonar o horizonte do possível.
Daí outra particularidade deste movimento sem igual: o único a incorporar metodicamente ao seu sistema de referências os grandes marcos de reflexão que delimitam a tradição crítica brasileira. De Caio Prado Júnior a Celso Furtado, cuja originalidade até hoje faz pensar, só o MST soube reconhecer. Ao contrário dos demais coletivos que pontuaram a história política do País pela combinação não prevista de capitalismo e escravidão, ou pela visão inédita do subdesenvolvimento como um resultado histórico-estrutural - e não uma etapa atrasada na linha evolutiva da modernização.
Acresce que um fio condutor, que Antonio Candido chamaria de radical, ora mais, ora menos puxado pelos extremos, percorreu essa tradição hoje extinta em sua vertente acadêmica: a passagem traumática em todos os sentidos da Colônia à Nação. Nó a ser desatado pelo processo que Caio Prado chamou de Revolução Brasileira (deixando em suspenso a definição de seu caráter), ou atado de vez. O nó cego da Revolução Burguesa, a reação autocrática permanente mapeada por Florestan.
Nessa plataforma e suas ramificações posteriores, o MST assentou seu enfoque do problema da terra e seu projeto nacional. Mesmo defasada nos seus termos, trata-se de uma confluência entre formas originais de pensamento que se cristalizaram - refletindo sobre a diferença brasileira no âmbito da expansão histórica do capitalismo do centro para a periferia por ele mesmo criada, pois não existe periferia em si - e uma prática política de ruptura e invenção social tocada pela iniciativa dos espoliados da terra, que não estava no programa de ninguém. Algo verdadeiramente notável.
O senhor poderia explicar esse momento em que o MST vira uma instituição e a USP passa de instituição a organização?
A USP começou a perder o seu perfil humboldtiano de universidade mal iniciado o período de transição nos anos 80. A ditadura massificara, pensando demagogicamente resolver o problema do chamado excedente. A esquerda achava que bastava democratizar o poder acadêmico exercido sobre aquela nova massa estudantil e docente. O contemporâneo colapso do desenvolvimento precipitou o longo processo de sucateamento e confinamento da vida acadêmica ao salve-se quem puder da administração da escassez. Como as demais instituições do welfare periférico, a USP foi alvo de todos os ajustes e reengenharias que se sabe. Fragmentou-se num arquipélago de institutos e fundações de apoio, povoados por estudantes-usuários e pesquisadores-investidores (no seu próprio capital humano). Como no mundo do trabalho, corroeu-se igualmente o caráter, na acepção sociológica que lhe deu Richard Sennet. Não estou moralizando, simplesmente notando que a idéia de carreira, sem carreirismo, deixou de fazer sentido. O ato docente, fundado numa vida dedicada à pesquisa, do berço acadêmico à vida ativa depois de uma aposentadoria digna, caiu no vazio institucional que se instalava. Sem o docente formador que inspira e enriquece os alunos – muito menos que o seu currículo, para o qual de fato passou a trabalhar como um condenado – não se pode mais falar da universidade como uma escola. Ponto final.
O MST nasceu naquele exato momento, só que dobrou tal esquina da nossa história recente no sentido contrário, politizando o mais extremo desvalimento. Sem terra, e tudo o mais que se refere aos mínimos de uma vida civilizada, foi reinventando um novo sujeito, que acabou recriando também a Escola. Assim, com maiúscula, pois sua crença - que eu chamaria de socialista - no poder da instrução na transformação do povo trabalhador, levou-o a instituir praticamente do nada, um dos raros ambientes que ainda podemos chamar de “formadores” em nosso País e na América Latina. Formador ou humanizador, como se queira.
É preciso lembrar que no centro do MST está o problema da produção. De alimentos, para ser mais específico nesta hora de crise alimentar global. Refiro-me, portanto, à preservação e ampliação de um ambiente humanizador, conjugado ao meio hostil do trabalho penoso e acossado por toda sorte de coerções. Da violência proprietária ao descaso dos poderes constituídos, desde sempre para facilitar a esfola costumeira dos primeiros. Falo do trabalhador que se instrui e cultiva enquanto agente de sua própria emancipação, que se humaniza e forma, escapando da condição de máquina de produzir mais valia neste grande moinho de gastar gente, como Darcy Ribeiro definiu o Brasil.
A Universidade Pública tem o dever de abrir as portas para os movimentos sociais e tomar como suas as demandas destes? Como o senhor avalia o envolvimento das universidades brasileiras, especialmente as públicas, com os movimentos sociais?
Aqui entramos em campo minado. Até agora nosso foco era uma Faculdade muito particular no sistema USP, cujo surgimento, aliás, se deu à revelia das grandes máquinas de diplomação da elite branca local (Medicina, Direito e Engenharia). Um sistema capitalista de profissões baseado na separação hierárquica entre concepção e execução. Para os peões, a escola técnica e olhe lá, nos velhos tempos fordistas. Imaginemos a situação surreal: um movimento social bate à porta da Escola Politécnica! De duas uma. Ou é a revolução que já ultrapassou todas as barreiras prévias àquele acesso privilegiado (e irá demonstrar na prática o que é uma verdadeira sociedade do conhecimento), ou será que ninguém se deu conta do que significa ingressar num sistema destinado a subordinar outras formas de trabalho? Neste último caso, descontada a inverossimilhança do exemplo, o remoto sucesso da iniciativa apenas denunciaria a pulverização do referido movimento num leque de ações afirmativas individuais.
Quanto aos convênios do MST com as universidades – para ir direto ao ponto –, correm por outra faixa que se poderia chamar de capacitação técnica estratégica. Como a direita não se engana a esse respeito, vive à beira de um ataque de nervos e sempre que pode extrapola. Seu fundamento material é o conhecimento socialmente produzido, porém confinado e esterilizado. Dito isto, a verdade verdadeira é que a esquerda acadêmica não sabe o que fazer, salvo a monótona reafirmação de uma universidade que nunca foi social.
Seria possível traçar um paralelo entre o magistério da filosofia há 50 anos e hoje? O senhor acredita que com a volta da obrigatoriedade do ensino de filosofia e sociologia no Ensino Médio, o professor dessas disciplinas pode voltar a ser valorizado?
Há meio século, o País não era menos socialmente horrendo. Mas o vínculo recente entre uma Faculdade de Filosofia como a nossa e os quadros do magistério secundário de cujo aprimoramento em princípio se encarregaria, é pelo menos, uma pequena revolução cultural em andamento, nos limites do possível (permitido pelo maior ou menor esclarecimento da própria burguesia). De resto, ela mesma enviava seus filhos de preferência àqueles ginásios e liceus que, embora públicos, eram seus mesmos ou compartilhados com as camadas médias da população. Classes das quais provinham os professores que chegaram a gozar de reconhecimento social numa escala impensável nos dias de hoje. Depois deste breve fastígio de classe, veio aos poucos o que se sabe: com a chegada da massa empobrecida, o aviltamento profissional e uma dramática desautorização da condição docente.
Não seria a filosofia que faria o “dia nascer feliz” no ensino médio brasileiro. Quem viu o filme, sabe que não há indicador que resista àquelas imagens de frustração e desengano. Que, aliás, precisam ser revistas na sua verdadeira chave, como vem fazendo, por exemplo, a socióloga Regina Magalhães de Souza. A seu ver, a escola à deriva, sem projeto educativo, objetivos ou conteúdos, não está em crise terminal, mas em perfeita sintonia com as atuais demandas de socialização dos jovens através do “aprendizado” de práticas de negociação com os novos fatos da vida. Assim, o que se “aprende” a valorizar num centro emissor de certificados – sem maior significado que o de validar a seleção já consumada dos perdedores – é o saber movimentar-se num mundo de coisas novas que, no entanto, são apenas as já existentes. No limite, a consagração de uma viração presente que vem a ser o próprio futuro que já chegou. A relação meramente instrumental com uma escola, que nada mais é do que um conjunto vazio de normas e regulamentos, um marco de sucesso adaptativo, numa sociedade em que o horizonte de expectativas encolheu drasticamente.
Por que não há mais base social para que interpretações como as de Florestan Fernandez, Celso Furtado, Caio Prado Júnior e Raimundo Faoro voltem a acontecer?
O mesmo horizonte anulado de expectativas rebaixadas (responsável pelo sucesso de adaptação passiva, que vem a ser as mil e uma manobras a que se resume a perene viração do “aprender a aprender”) em que se viu engessada a imaginação do povo miúdo das escolas brasileiras, também roubou o fôlego dos herdeiros de uma tradição crítica que não se esgotou por escassez de talentos. Longe disto.
Porque haveria de ser diferente, se o chão social é comum? Não basta dominar o seu ofício – no caso, a tradição crítica herdada, virada e revirada até o osso, a ponto de se tornar um formalismo a mais – numa sociedade decididamente unidimensional. Foi-se o tempo que tínhamos encontro marcado com o Futuro, com a Modernidade, ou o que fosse, contanto que assinalasse a presença tangível da História correndo a nosso favor. Até mesmo o golpe de 1964 era a contra-prova de que uma bifurcação real em nosso tempo histórico se apresentara, tanto é que uma violência política inaudita foi então deflagrada, e até hoje corre solta, para erradicar de vez a alternativa. O meio século de vigência daquelas grandes interpretações mobilizadoras distinguiu-se por uma espécie singular de processo mental. O que Antonio Candido chamou certa vez de “consciência dramática do subdesenvolvimento”, um tempo em que o País ingressou na dinâmica de uma conjuntura longa, porém agônica, alimentada pela experiência catastrófica da miséria pasmosa das populações, pedindo desfecho superador, justamente da condição subdesenvolvida.
Hoje vivemos em tempo morto. Em linguagem teatral, um tempo pós-dramático veio preencher o vazio deixado pela épica das massas em movimento, pelo menos até o fim dos anos 80. Por favor: nada a ver com o desalento confortável de quem continua se dando bem num país em que “tudo fracassou”, nas palavras do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (não por acaso um elo nada desprezível daquela mesma tradição crítica, cuja dimensão afirmativa afinal aflorou plenamente nos anos 90).
Aliás seria bom não esquecer, neste momento de transição, quem sabe para uma outra teoria crítica impulsionada pela nova urgência da hora, que no avesso do ciclo intelectual anterior – ou melhor, no direito –, o empenho em romper com as raízes do “atraso” mal se distinguia da ambição de uma contra-elite em emparelhar com os padrões metropolitanos de progresso. Por isso mesmo, escapavam ilesos da crítica, para não falar de uma possível rejeição.
Cinismo dos vencedores à parte, o fato é que o horizonte do Brasil encurtou. Resta saber que rumo político dar à interpretação deste fenômeno inédito. O deboche da classe dominante e seus representantes intelectuais consiste em arrematar. Nossas ambições são medíocres porque se encontram plenamente realizadas com a atual reconversão primário-exportadora financeirizada. A resposta de esquerda deve pelo menos partir do reconhecimento de que um tal encolhimento de horizontes pode muito bem significar um tempo social em que, pela primeira vez, as expectativas não só não ultrapassam, mas coincidem inteiramente com a experiência presente. Isto significa que a conjuntura tornou-se literalmente emergencial, como se a sociedade se confundisse com uma descomunal urgência médica. Para os mandantes de turno, a saída é puramente gestionária e combina programas sociais seletivos com escalada penal. Quanto à esquerda, se deseja mesmo se reinventar, precisa aprender a intervir numa coisa jamais vista, uma conjuntura perene.
4ª Semana de Luta pelo Passe Livre
Pelo quarto ano seguido o Movimento Passe Livre organiza manifestações na semana do 26 de outubro, data escolhida pelo MPL para simbolizar o dia de luta nacional pela gratuidade no transporte coletivo. A escolha da data remete ao ano de 2004, quando aproximadamente de mil manifestantes cercaram a Câmara dos Vereadores de Florianópolis para exigir a aprovação de uma lei que concederia passe livre aos e às estudantes. Meses depois, uma ação conjunta entre o prefeito Dário Berger (PMDB, ex-PSDB) e o Tribunal de Justiça revogou a lei, mas o 26 de outubro ficou marcado pelo MPL em todo país.
Passados quatro anos o Movimento Passe Livre ampliou a luta, passando a reivindicar a gratuidade para o conjunto da população. Para o MPL o transporte coletivo deve ser considerado um direito essencial, assim como saúde, habitação, moradia e educação e deve ser subsidiado pelo Estado através da cobrança de impostos da parcela rica da sociedade ? os verdadeiros beneficiados pelo sistema de transporte responsável pelo deslocamento de homens e mulheres para os locais de trabalho. Para o movimento, o passe livre é também uma forma de garantir o direito de ir e vir e o acesso da população a estes outros direitos já citados.
Veja o que acontecerá nesta semana:
Em Florianópolis, nesta quarta-feira, 29, manifestação/panfleta gem às 17h em frente ao Terminal do Centro. O tema do ato será o fim das concessões das empresas privadas e a defesa da municipalizaçã o e tarifa zero.
Em São Paulo, o Movimento Passe Livre se reunirá na quinta-feira, 30, às 14h, na Praça da Sé. O mote da manifestação é: Uma cidade só existe para quem pode se movimentar por ela.
No Distrito Federal o Movimento Passe Livre organizará um Carnaval Fora de Época, também na quinta-feira, 30. Concentração às 17h na Praça do Relógio, Taguatinga.
Em Curitiba o MPL panfletou nos tubos (pontos) de ônibus para defender um "transporte verdadeiramente público e de qualidade, subsidiado pelo Estado".
sábado, 25 de outubro de 2008
VITÓRIA! Trabalhadores da Flaskô conseguem religar a energia elétrica!
O corte havia sido feito há uma semana, sem aviso-prévio e rompendo as negociações entre as partes, que estava se desenvolvendo com a intermediação da própria Superintendência.
Mas, após a pressão dos trabalhadores e apoiadores da fábrica ocupada Flaskô - inclusive com realização de ato público em frente à CPFL, e com a campanha de moções de repúdio contra o ocorrido - a companhia foi obrigada a voltar atrás e, além de restabelecer o fornecimento de energia elétrica, retomou as negociações exatamente de onde elas pararam.
Resultados
Assim, os prazos para pagamento das contas mensais foram restabelecidos, sem a ameaça de corte imediato por parte da CPFL. Além disso, o pagamento das parcelas das dívidas deixadas como herança maldita dos patrões sobre os trabalhadores fica suspenso até nova reunião, dia 27/11. A proposta dos trabalhadores é pagar esses débitos utilizando créditos de ICMS. A documentação exigida para isso é complexa, mas a comissão de fábrica já está se esforçando para conseguir.
Caso não seja possível quitar os débitos dessa forma, os trabalhadores propõem que 1% do faturamento mensal da fábrica seja destinado ao pagamento dessas dívidas.
Além disso, esgotadas as possibilidades de acordo, a CPFL somente poderá interromper o fornecimento de energia elétrica com aviso-prévio de 15 dias.
Continuar a luta
É claro que esse acordo não resolve todos os problemas da fábrica ocupada, mas diminui os riscos de corte de luz, além de significar uma grande vitória da mobilização unitária dos trabalhadores e aliados da Flaskô.
Para que a situação comece a ser resolvida, de fato, é necessário que o governo Lula retome as discussões com o Movimento das Fábricas Ocupadas, no sentido de estatizar a Flaskô sob controle operário e retirar a intervenção federal na Cipla e Interfibra, estatizando-as também sob controle dos trabalhadores.
Dessa maneira será possível manter os empregos, recuperar os direitos e o parque fabril e organizar democraticamente a produção para atender os interesses dos trabalhadores e do povo.
Agradecimento
Os trabalhadores da Flaskô agradecem ao apoio recebido nesse momento difícil, mas que foi crucial para manter a fábrica aberta, sob controle operário e em luta pela estatização e o socialismo!
Conselho de Fábrica da Flaskô
Trabalhadores e apoiadores da Fábrica Ocupada Flaskô intimam a CPFL em ato público
Por Conselho de Fábrica da Flaskô
Cerca de 50 trabalhadores e apoiadores da Fábrica Ocupada Flaskô realizaram nesta quarta-feira (22/10) um ato público em frente à Companhia Paulista de Força de Luz (CPFL) para protestar pela retomada imediata do fornecimento de energia elétrica e pela retomada da negociação (de onde ela parou).
Na segunda-feira (20/10), uma comissão da fábrica foi até a CPFL para conversar, mas a companhia não recebeu os trabalhadores, não confirmou o motivo do corte e nem sequer aceitou protocolar os documentos que a comissão levou. Um funcionário disse que tinha ordens para não receber nada e nem ninguém da Flaskô.
Diante dessa intransigência, no dia seguinte, a comissão procurou a Superintendência do Ministério do Trabalho (DRT/SP), que estava mediando as negociações, para relatar o ocorrido. A DRT resolveu, então, intimar a CPFL a comparecer, em 48 horas, numa nova audiência. O prazo se esgota nesta quinta (23/10), às 14h.
Assim, o ato público marcou a entrega dessa intimação para a CPFL e expressou a resistência e os sentimentos dos trabalhadores e aliados do Movimento das Fábricas Ocupadas.
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD), Sindicato dos Químicos de Campinas, mandato do vereador Paulo Búfalo (PSOL/Campinas), estudantes da UNICAMP e Centro Acadêmico de Ciências Humanas (CACH - UNICAMP), Associação de Moradores do Parque Bandeirantes, além de uma delegação de militantes da Esquerda Marxista de SP e Campinas compareceram à manifestação.
CPFL passa ridículo
A intransigência da CPFL beira o ridículo. Ao saber da manifestação, preparou um esquema de segurança para impedir a entrada dos trabalhadores na sala da recepção e passou correntes e cadeado no portão do estacionamento.
Foi preciso conversar com o responsável para permitir que os trabalhadores tomassem água e utilizassem o banheiro da recepção, mesmo assim, a entrada só foi permitida para uma pessoa por vez.
Porém, a humilhação também envergonha quem humilha e os trabalhadores souberam minar a truculência da CPFL com sarcasmo e bom humor. Um dos seguranças ganhou até um apelido... Brincadeiras à parte, com certeza, o tratamento dado aos empresários e banqueiros da região é bem diferente deste, destinado ao povo pobre e trabalhador.
Depoimento marcante
A companheira Carla é esposa do companheiro Tiago, trabalhador da fábrica, e o casal tem uma filha de 6 meses de idade e mora na Vila Operária e Popular, bairro construído pelo povo no terreno que pertence à Flaskô.
Um funcionário da CPFL comentou que estava com dó dela e do bebê pelo sol forte que fazia no momento do ato público. A companheira agradeceu a preocupação, mas pegou o microfone e disparou: "a CPFL tinha que ter dó antes de cortar a energia dos trabalhadores. Eu moro nos fundos da fábrica e uso a mesma luz na minha casa. Como pode uma mãe de família, com um bebê para cuidar, viver no escuro? Tinha comida na minha geladeira que tive que jogar fora porque estragou"!
Além deste, vários outros depoimentos relataram o susto, o perigo, o descaso e o prejuízo causados pelo corte de energia elétrica.
A bola está com o governo
Com a reunião marcada pela DRT/SP, a questão está nas mãos do governo Lula, pois o órgão pertence ao Ministério do Trabalho. Os trabalhadores lutam para dobrar a intransigência da CPFL, mas se o governo não fizer nada na audiência ou for conivente com a empresa, a fábrica ocupada Flaskô poderá ser levada ao fechamento, já que sem energia elétrica não dá para produzir e, sem produzir, não dá para pagar os salários e manter os empregos.
Por isso, em mais um esforço heróico, os trabalhadores da Flaskô convocam, em regime de urgência, um ato na DRT/SP, nesta quinta-feira (23/10), às 14h (Rua Martins Fontes, esquina com a Av Consolação)
sexta-feira, 24 de outubro de 2008
Ditadura Militar: O Governo mostra seu lado
Deu em O Globo:União faz a defesa de acusados de tortura
Governo evoca Lei da Anistia ao contestar ação contra coronéis da reserva que chefiaram DOI/Codi nos anos 70
Ricardo Galhardo
SÃO PAULO. A União assumiu a defesa dos coronéis da reserva Carlos Alberto Brilhante Ustra e Audir dos Santos Maciel, alvos de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal (MPF) pela tortura de presos políticos e a morte de pelo menos 64 deles entre 1970 e 1976, período em que comandaram o Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI/Codi) do Exército.
Na prática, segundo fontes do Ministério Público, significa que o governo optou pela defesa dos acusados, quando poderia se manter neutro ou até mesmo se posicionar a favor das punições. Agora a União também é ré na ação.
Este ano, o ministro da Justiça, Tarso Genro, e o secretário nacional de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, chegaram a se manifestaram a favor da punição aos torturadores, mas foram desautorizados pelo ministro da Defesa, Nelson Jobim, que teria manifestado opinião do presidente Lula.
Na contestação de 44 páginas apresentada em 14 de outubro pela Advocacia Geral da União à 8ª Vara Federal Cível de São Paulo, a advogada Lucila Garbelini e o procurador-regional da União em São Paulo, Gustavo Henrique Pinheiro Amorim, defendem a tese de que a Lei da Anistia de 1979 protege os coronéis: "A lei, anterior à Constituição de 1988, concedeu anistia a todos quantos, no período entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos (...). Assim, a vedação da concessão da anistia a crimes pela prática de tortura não poderá jamais retroagir".
A ação do Ministério Público contra Ustra e Maciel é a primeira a contestar a validade da Lei da Anistia para acusados de tortura. Na ação, os procuradores federais Marlon Weichert e Eugênia Fávero pedem que Ustra e Maciel restituam à União todo o dinheiro pago em indenizações a vítimas de tortura no DOI/Codi, principal centro de repressão política em São Paulo entre 1970 e 1976. No período, segundo dados das próprias Forças Armadas divulgados no livro "Direito à Memória e à Verdade", da Presidência da República, 6.897 pessoas passaram pelo DOI/Codi.
Até intimidade das vítimas vale como argumento
AGU sustenta que famílias podem não querer 'reabrir feridas'
SÃO PAULO. Na contestação, a Advocacia Geral da União cita a proteção à intimidade das vítimas de tortura como argumento para defender os ex-comandantes do DOI/Codi. "É necessário ao Estado preservar a intimidade de pessoas que não desejam 'reabrir feridas', isto é, não gostariam que determinados fatos do período de exceção viessem a lume", afirmam os advogados.
Além de indenização, a ação do Ministério Público pede que a União forneça os nomes de todos os que passaram pelo local, a identificação dos torturados, a identidade dos mortos dentro do DOI/Codi ou em ações externas de seus agentes, as circunstâncias das mortes, o destino dos corpos, os nomes dos torturadores, a responsabilização pública de Ustra e Maciel e a perda das funções públicas eventualmente exercidas por ambos.
Maciel está morto. Em outras ações movidas por vítimas da repressão política das quais foi alvo, Ustra disse que apenas cumpria ordens.
OAB entra com ação no Supremo Tribunal Federal
Entidade agora quer decisão sobre Lei da Anistia
Carolina Brígido
BRASÍLIA. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) entrou ontem com uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) pedindo que a Corte declare que os crimes praticados por militares e policiais durante a ditadura, como a tortura e o assassinato de militantes, não tenham a cobertura da Lei de Anistia. Em agosto de 1979, o presidente João Figueiredo concedeu anistia a todos que "cometeram crimes políticos ou conexos com estes" entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. A OAB entende que os torturadores não estão protegidos e devem responder por seus crimes.
"É sabido que o dispositivo foi redigido intencionalmente de forma obscura, a fim de incluir, no âmbito da anistia criminal, os agentes públicos que comandaram e executaram crimes comuns contra opositores políticos ao regime militar", diz a ação assinada pelos advogados Fábio Konder Comparato e Maurício Gentil Monteiro. "É irrefutável que não podia haver e não houve conexão entre os crimes políticos, cometidos pelos opositores do regime militar, e os crimes comuns contra eles praticados pelos agentes da repressão e seus mandantes no governo".
- Tortura não é crime político em lugar nenhum do mundo - argumenta o presidente da OAB, Cezar Britto.
quinta-feira, 23 de outubro de 2008
Transporte Público Para Além das Eleições - Jornal PASSE 2
MOBILIDADE URBANA
Leia e distribua o jornal PASSE nº 2, do Movimento Passe Livre de São Paulo
Já está disponível o segundo número do jornal PASSE, do Movimento Passe Livre de São Paulo. Para ler e passar adiante.
Este número tem como tema o transporte público para além das eleições. Produzido nas vésperas do segundo turno para prefeito, o movimento quer mostrar que, "independente de quem ganhe essas eleições, o transporte público permanecerá como uma causa urgente. Ganhe quem ganhar, o que queremos é uma prefeitura disposta a escutar as nossas necessidades e, mais que isso, que abra espaços de participação popular. Não queremos apenas ser consultados, queremos participar das tomadas de decisões que nos dizem respeito" (ver pág. 3).
O jornal apresenta como um bom exemplo de política pública a atuação de Lúcio Gregori como secretário de Transporte, durante a gestão Luiza Erundina. Lúcio municipalizou o transporte coletivo em São Paulo e propôs o projeto Tarifa Zero (ver pág. 4). O jornal enumera as principais ações dos candidatos Marta e Kassab em relação ao transporte coletivo (tanto as ruins como as boas, ver págs. 6 e 7) e lembra que ninguém deve ficar parado, achando que as mudanças efetivas virão de um desses dois. Até porque "somos muitos mais do que eles"... (ver págs. 5 e 8).
A palavra PASSE, escrita com letras vazadas na capa do jornal, sugere aberturas e diferentes caminhos. Quando existir transporte gratuito será assim: haverá mais mobilidade e mais liberdade para toda a população
links: http://prod.midiaindependente.org/pt/ blue/2008/10/431614.shtml
jornal PASSE São Paulo nº2 http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2008/09/429473.shtml
jornal PASSE São Paulo nº1 http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2008/04/416083.shtml
jornal PASSE Floripa nº1 http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2006/08/358953.shtml
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Transporte Público Para Além das Eleições
O Movimento Passe Livre (MPL) luta, inicialmente, por uma política pública: o passe livre universal. Acreditamos que o transporte é um direito (não uma mercadoria) e que a prefeitura deve dedicar uma parte de seu planejamento e de seu orçamento para custear totalmente o transporte. Da mesma forma como a prefeitura consegue investir R$ 233 milhões em uma única ponte para automóveis no novo centro econômico da cidade, ela pode investir milhões no transporte coletivo, beneficiando o conjunto da população. Para isso, é necessário que exista vontade política. As soluções técnicas e de financiamento irão aparecer a partir do momento em que houver essa vontade política. O nosso papel, como usuários e usuárias de ônibus e como pessoas que nem sequer podem usar ônibus, por causa das tarifas, é mostrar que essa vontade já existe. Que, no nosso caso, é muito mais que uma vontade: é uma necessidade.
No Brasil, aproximadamente 35% da população dos centros urbanos não pode pagar as tarifas de ônibus. São pessoas que não podem sequer estudar em escolas gratuitas, porque não podem pagar o ônibus até a escola. Que têm dificuldades para ir até hospitais em situações de emergência. Que nunca vão a parques e espaços culturais.
O que chamamos de "passe livre" seria a liberdade de toda pessoa andar de ônibus sem ter que pagar uma tarifa, para onde quiser a hora que quiser. Acreditamos que essa liberdade é fundamental para ativar a própria dinâmica da cidade; que a cidade só existe para quem pode se movimentar por ela.
Neste número do jornal PASSE, produzido nas vésperas do segundo turno das eleições para prefeito, queremos mostrar que, independentemente de quem ganhe essas eleições, o transporte público permanecerá como uma causa urgente. Para nós nada importam as propagandas personalistas de Marta e de Kassab – nem acabaram as eleições e já não agüentamos olhar para as suas caras e bocas. Ganhe quem ganhar, o que queremos é uma prefeitura disposta a escutar as nossas necessidades e, mais que isso, que abra espaços de participação popular. Não queremos apenas ser consultados, queremos participar das tomadas de decisões que nos dizem respeito. Não queremos que decidam como deve ser a cidade por nós, principalmente porque a grande maioria dos candidatos sequer utilizam o transporte coletivo em seu cotidiano e nada sabem da nossa realidade. Queremos que eles assumam a responsabilidade de governar para todos, de administrar de maneira mais justa o dinheiro público. Queremos que respeitem os nossos direitos e que façam políticas públicas de verdade. A constituição diz que o transporte é um direito e esse direito deve ser praticado.
Políticas públicas de transporte
No atual sistema de governo, dependemos de iniciativas parlamentares para que uma política pública seja proposta e executada. Aos que pensam que é impossível algum governante propor uma política pública que preste, vamos contar uma historinha que aconteceu entre 1990 e 1992 em São Paulo. Nesses anos um engenheiro chamado Lúcio Gregori foi secretário municipal de Transportes (gestão Luiza Erundina) e apresentou dois projetos muito corajosos:
1. Municipalizaçã o
Lei aplicada em 1991, a municipalizaçã o dos ônibus de São Paulo corrigiu uma distorção neste setor: o transporte que antes era gerido e planejado por empresas privadas passou a ser de inteira responsabilidade do poder público. O controle sobre a planilha de custos, itinerários e preços passaram a ser decididos fora dos gabinetes empresariais, apesar de as empresas ainda serem proprietárias dos ônibus. Esta lei foi cortada durante a prefeitura de Marta Suplicy (ver nas próximas páginas o que fizeram os candidatos na condição de prefeitos), mas é importante entendermos que a municipalizaçã o preparava terreno para algo muito maior, a Tarifa Zero, o outro projeto proposto por Lúcio Gregori.
2. Tarifa Zero
Lúcio defendia que uma coisa era o custo do sistema de transporte (terminais, corredores, gasolina, óleo, funcionários etc.) e outra coisa era o preço da tarifa. Essas duas coisas precisavam ser separadas. O custo do transporte seria pago através de um fundo municipal de transporte e a tarifa seria gratuita (deixaria de existir). "Perguntaram se eu estava propondo ônibus de graça para todas as pessoas. Não era ônibus de graça, esse ônibus teria um custo. Mas era um ônibus com tarifa zero", conta Lúcio. A prefeitura contrataria o serviço de algumas empresas de ônibus, por um valor pré-estabelecido em seu orçamento, de modo que a tarifa deixasse de ser o determinante da qualidade e do acesso a este serviço (através da municipalizaçã o, vista anteriormente) . Para arrecadar dinheiro para o fundo municipal de transporte Lúcio e sua equipe de técnicos propuseram uma reforma na cobrança de impostos "progressivos" (impostos que aumentam proporcionalmente, por exemplo o IPVA: quanto mais caro o carro da pessoa, maior o IPVA). No caso específico desta proposta (podem haver outras soluções para arrecadar dinheiro), haveria um aumento na taxa de IPTU de bancos, terrenos não utilizados, além de uma maior tributação para empresas. Desta forma, além de propor um transporte público de verdade, sem exclusão das pessoas que não têm como pagar por este serviço, a Tarifa Zero significaria uma redistribuição de renda. Não seriam mais os usuários e as usuárias de ônibus a pagar por este serviço, mas os setores mais ricos da sociedade.
Trouxemos este breve histórico para mostrar que é possível um governante propor políticas públicas que atendam aos reais interesses da população. Ao mesmo tempo, como ocorreu no caso da Tarifa Zero, estas propostas dificilmente são aprovadas por nossos vereadores, deputados etc. Este projeto não foi nem ao menos votado, pois a maior parte dos políticos considerou a proposta absurda. As pesquisas da época mostraram que 65,3% da população aprovava a Tarifa Zero, mas, apesar desta aprovação, as pessoas não saíram nas ruas para pressionar os vereadores, faltou mobilização popular para exigir que o projeto fosse votado e aplicado. Hoje isso precisa ser diferente...
AÇÃO DIRETA
Antes, durante e após as eleições nós do Movimento Passe Livre vamos continuar pressionando os governos por um transporte público gratuito e de qualidade. Fazemos isso através de manifestações de rua, debates, mostras de vídeo e jornais como este. Atuamos de maneira direta, forçando o governo a adotar políticas para o povo e não em favor de interesses próprios, que é exatamente o que observamos quando os candidatos utilizam obras públicas apenas como instrumento de campanha eleitoral. Mas tão importante quanto lutar por políticas públicas, ou muito mais importante, é as pessoas se auto-organizarem. No lugar destes representantes, que não nos representam, precisamos fazer com as nossas próprias mãos o que achamos que deve ser feito.
Uma primeira sugestão é que cada pessoa interessada em uma cidade diferente e mais justa organize conversas na sua comunidade sobre como deveria ser um serviço público, sobre os seus direitos e a importância do transporte coletivo nas suas vidas. Que discutam sobre a própria organização da cidade (moradores das periferias sentem de forma mais aguda o que significa um sistema de transporte ruim e excludente). Outra sugestão é as pessoas se organizarem de igual para igual, de modo que todos e todas tenham o mesmo poder de participação e decisão. Afinal, se estamos juntos por um objetivo comum, não há porque disputar posições, disputar poder, querer estar acima de outras pessoas. Não podemos repetir os mesmos vícios e erros dos políticos que conhecemos, que não realizam nenhum tipo de debate efetivo com a população e se isolam da realidade nos prédios da câmara e da prefeitura. Existe algo mais forte nos aproximando, que é a possibilidade de sermos responsáveis pelas nossas próprias vidas (isso é o que chamamos de "autonomia") e a crença em um mundo mais justo para todos e todas.
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O Movimento Passe Livre (MPL) é um movimento social autônomo. Não temos ligação com nenhum partido político, com nenhuma empresa. Somos pessoas comuns que se juntaram para ficarem mais fortes juntas. Para defender transporte gratuito e uma cidade mais justa ninguém precisa entrar para o nosso movimento. Mas ninguém deve ficar parado, achando que as políticas públicas vão cair do céu ou que Marta ou Kassab vão solucionar os nossos problemas sem a nossa participação. Aquele que se eleger prefeito terá uma responsabilidade grande para assumir, mas a nossa responsabilidade é muito maior. Vamos lutar pelos nossos direitos, nem que para isso a gente tenha que ocupar as ruas, ocupar os terminais de ônibus, pular catracas, abrir as portas traseiras dos ônibus para não passar pela catraca e ocupar a prefeitura e a câmara de vereadores até que dêem ouvidos para as nossas propostas. Nós somos muitos mais do que eles.