CORREIO DA CIDADANIA
Estamos na porta de entrada de tempos (ainda mais) difíceis no país. Com crise, desemprego e muita violência nas grandes cidades, os políticos, sem romper seus pactos, precisam apresentar soluções para combater tal quadro. Dessa forma, é produzida uma série de medidas que mais combatem os pobres do que a pobreza. Pintam as paredes, mas não mexem na estrutura interna do ‘prédio’.
Por conta disso, o Rio de Janeiro vem sendo palco de seguidas políticas de limpeza e segregação social, como mostram os choques de ordem e agora o levantamento de muros no entorno de favelas, levados a cabo por prefeitura e governo do estado, respectivamente.
Para a socióloga Vera Malaguti, do Instituto de Criminologia Carioca, o que vemos é a expressão de um fascismo estatal mancomunado com grandes interesses econômicos. O governo pretende levantar 11 mil metros de muros, com 3m de altura, começando pela zona sul, cuja expansão de favelas não chegou à metade do aferido na zona oeste, de 11,5% - dados do Instituto Pereira Passos.
Malaguti aponta que os pobres no Rio de Janeiro são vítimas de crescente truculência oficial e vistos como ‘lixo humano’ que precisa ser removido da cidade, uma vez que a presença dessa parcela da população é prejudicial aos grandes negócios e à especulação imobiliária.
Correio da Cidadania: Como você vê a idéia do governo local de construir muros no entorno de favelas, sob a alegação de preservar algumas áreas verdes da cidade?
Vera Malaguti: É um absurdo e vem junto do circo de horrores do qual vem sendo palco o Rio de Janeiro, através de extermínios da polícia (a que mais mata no mundo), das remoções dos pobres, demolição de casas em áreas populares ilegais...
Enfim, é todo um festival de truculência, em articulação da prefeitura com o governo do estado, completamente ligados aos grandes negócios privados, como os esportivos, e impondo um cerco fascista sobre os pobres. E, além do muro, que é uma vergonha, as remoções voltaram à pauta.
Todo o processo é capitaneado pelas Organizações Globo, com campanha diária no RJTV, no jornal O Globo, sempre focalizando a pobreza como detrito, como algo que conspurca o ambiente. E tudo em nome dos grandes negócios privados, uma vergonha.
O Rio de Janeiro talvez esteja passando pelo seu pior momento desde Lacerda. Parece uma volta com força total da UDN, terrível.
CC: O que pensa do fato de as favelas escolhidas para receberem os primeiros muros se localizarem em bairros mais nobres ou de classe média, mesmo com a expansão recente de tais favelas estando abaixo de índices considerados preocupantes, inclusive em comparação com outras?
VM: Aí fica clara a parceria do governo com a especulação imobiliária, afinal, são áreas nobres, e ter os pobres ali não lhes interessa.
É tão chocante, tão óbvia, essa mistura de truculência fascista com Parcerias Público-Privadas sinistras! Estou sendo enfática, mas é que chegamos num ponto... Ontem mesmo houve o assassinato pela polícia de um menino da Maré, a população tentava protestar e era reprimida da pior forma possível pela mesma polícia. E tudo sempre sob a desculpa do tráfico.
Acho que o fim do brizolismo no Rio foi muito ruim. Para exemplificar, uma das coisas que O Globo fez para comemorar os 45 anos do golpe militar foram acusações levianas sobre o Brizola, ao mesmo tempo em que o associava ao crescimento das favelas. O vazio criado por sua morte, junto ao estraçalhamento das forças de esquerda, deixou o fascismo ocupar a cidade.
CC: Ao se juntar tal ação com a também recente medida dos choques de ordem, vemos que as políticas de higienização nas grandes cidades têm sido levadas ao paroxismo, não?
VM: Exatamente. O velho projeto fascista, com essa maneira de olhar os pobres como lixo humano na cidade, se consolidou, sendo orquestrada também pela grande imprensa tal proposta de apartheid.
Os pobres no Rio de Janeiro vivem dias de horror. Acho que as forças de esquerda, libertárias, precisam se organizar contra isso. Tudo começou pela questão criminal, o que é um problema, pois até a esquerda embarca no discurso de luta contra o tráfico, sempre localizada nas favelas.
Daí para choques de ordem, remoções, muros, é um passo. É um projeto higienista reciclado, em nome da ordem na cidade, dos grandes negócios de Copa, Olimpíadas, dos grandes capitais que circulam no Rio. Tais negócios são uma obsessão para o governo e a prefeitura, que sempre estão em viagem buscando grandes investimentos.
Enquanto isso, pau nos pobres aqui. É um projeto sinistro.
CC: Essas medidas não podem potencializar o ódio entre classes, na medida em que reforçam uma idéia segregacionista?
VM: Claro, isso não vai dar certo. Durante um tempo, algumas forças progressistas do Rio aceitaram a pauta criminal da direita, e assim o fascismo encontrou sua brecha, sendo que acaba se alastrando para a questão habitacional, ambiental, onde muitas vezes se refugia, como neste caso dos muros, aliás.
Uma vereadora do PT foi uma das que mais defenderam os muros, sempre fala em remoções nas favelas da zona sul, como a dos Tabajaras, uma vez que as áreas verdes na cidade se concentram mais na zona sul e posto 9.
Tais equívocos abrem o caminho para o fascismo mais explícito, que vemos nessa mistura de truculência contra os pobres e grandes negócios (com ilegalidades) particulares.
CC: Você acredita que o levantamento dos muros vai impactar de alguma maneira, ainda que a curto prazo, nos índices de criminalidade?
VM: Acho que vai emparedar os pobres e produzir outros efeitos, intra e extramuros. É mais uma grande violência, portanto, entrará nesse moinho gerador de ódios.
Espero que isso possa ser barrado, apesar de todo o esforço da grande imprensa. Fazem pesquisas dizendo que os favelados são favoráveis à remoção, pesquisas para legitimar tais ações... Não deve faltar sociólogo para fazer esse tipo de trabalho e dizer que os pobres estão doidos para serem emparedados e removidos da cidade.
No Rio de Janeiro, neste momento, essas forças, que envolvem institutos de opinião, empresas de publicidade, grande imprensa, setor imobiliário, estão totalmente articuladas na varredura da pobreza da cidade. E da pobreza rebelde, que é uma marca do Rio de Janeiro há muito tempo, pois foi uma cidade quilombola, depois janguista, brizolista...
Estamos diante de um conjunto de interesses escusos, mais uma ‘blitzkrieg’.
CC: Diante do quadro atual, quais medidas seriam efetivas a seu ver, tanto a curto como a longo prazos?
VM: O inverso disso tudo, uma outra maneira de olhar a cidade. Construir políticas habitacionais democráticas, projetos em que as classes populares sejam protagonistas.
Não bastam bons projetos para os pobres, é preciso que esses setores estejam no centro, que a juventude, ao invés de ser criminalizada, seja participante central dos projetos que a libertem dessa concepção de muros, cadeias, extermínio. Temos de produzir outro projeto brasileiro, que não contenha essas conjugações.
É complicado resolver a violência, ninguém tem a solução. Mas uma cidade democrática é gerida de outra forma, e assim produz soluções também democráticas e libertadoras, capazes de permitir que todos usufruam a cidade, apesar das diferenças.
Em suma, é o oposto de tudo isso.
Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.
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