Sobre a greve da polícia civil
A tirinha acima foi extraída do Blog Malvados sob autorização do editor, o humorista André Dahmer, acessível em: http://www.malvados.com.br. Apesar de homônimo, ele não é o mesmo André Dahmer, da Delegacia de Inteligência da Polícia Civil de São Paulo e diretor da Associação dos Delegados de São Paulo.
Politicamente isto é um problema: como se posicionar frente a um conflito entre governo e as polícias, ainda mais no contexto brasileiro?
Numa primeira aparência, vemos o conflito entre polícia militar e civil, nos posicionando ao lado dos grevistas, mesmo sabendo que num nível mais profundo, ligado às práticas, era um conflito entre aqueles que até hoje praticam a tortura nas delegacias e aqueles que até hoje praticam a execução sumária (o julgamento e execução no próprio local do suposto ou posposto crime).
Mas por outro lado, é bom lembrarmos que a polícia se desenvolveu num acordo pós-ditadura que a torna praticamente blindada a reformas, garantida, entre outros, pelo esquema sistêmico de corrupção que circula as delegacias.
Guaracy Mingardi descrevia isto como uma ecologia da delegacia onde há o truta, ou ladrão, o ganso, ou cagüete, dedo-duro, amigo-de-polícia, etc., o delegado de plantão, o delegado, o investigador, o escrivão e o advogado de porta de cadeia.
Comecemos pelo esquema mais simples: o ladrão é preso, normalmente dedurado por alguém conhecido como ganso, o advogado de porta de cadeia negocia um acordo (ou acerto), o investigador caso aceite repassa para o escrivão que faz um processo ambíguo, um registro de fácil contestação de prévio conhecimento do advogado, e a maior parte fica com o delegado (talvez por possuir curso superior, trabalho complexo?).
Destes, notemos, só o ladrão realizou trabalho e, muitas vezes, caso o cliente "suma da praça", o advogado mesmo falsamente o denuncia, pra que ele arranje dinheiro de algum modo, provavelmente voltando ao crime, assumindo o papel de ganso.
Cada delegacia produz grana de um jeito, em bairros nobres, flagrantes de porte de drogas (ameaçando passar a linha tênue entre o porte e o tráfico) e pobres com furto ou assalto, a maioria destes casos não mereceria menção, talvez nem devesse mesmo ser preso por coisinhas tão diminutas, mas o caso é como se relaciona com o cotidiano do policial.
Por que eles fazem isto? - Primeiro por que é algo sistêmico e que vêm da ditadura e segundo, por que talvez seja impossível sair disso até hoje, por causa dos baixos salários. Em geral o delegado não ganha tão mal, ganha em relação a outros trabalhos públicos com curso em direito, mas todo o resto da delegacia ganha pouco, o que força a buscar bicos como segurança, e outros já citados (o que desgasta ainda mais o policial que além de fazer o que faz mal, ainda faz muitas coisas que cansam muito).
O cotidiano da delegacia é rico em ocorrências, destas só conhecemos as espetaculares, por que é só destas que interessam à imprensa, e principalmente, ao governo do estado, o que faz com que desprezem as ocorrências diminutas.
Outro problema é a relação entre a polícia militar e a civil. Comecemos pelo fato da polícia militar descarregar centenas de pessoas que não tiraram nada na rua, então levam estas pessoas para serem "trabalhadas" (torturadas), infelizmente a única forma de interrogatório que existe no país.
Destas a grande maioria não tem nada a ver, mas a lógica da PM é outra, eles trabalham com números, isto é, se tantas pessoas forem presas, eles, os soldados, são bonificados ou sobem mais rápido na carreira, seja em número de presos, o que é mais difícil (pois quem prende é a polícia civil), quanto em número de corpos abatidos, o que é mais fácil, e que normalmente é reconhecido pelas pessoas (os programas de TV de ou para policiais em geral reclamam pelo número de pessoas soltas sem se perguntar qual o número destas realmente era envolvido em crimes).
A PM, nem preciso dizer ganha pouco, isto é notório, mas o principal é que passam dificuldades econômicas que os levam a bicos e esquemas corruptos na rua, que, além disso, são bem menos rendosos que os da Polícia Civil (que obriga a serem feitos em maior quantidade). Além disso, policiais militares são humilhados e torturados o tempo todo.
Se um policial mata alguém é premiado, se mata alguém errado é advertido e deslocado, mas se vai com a bota suja é preso e pode apanhar. Isto é bem pitoresco, são constantemente torturados o que provavelmente os faz achar que tem o direito de bater em qualquer um, assim como são obrigados a respirar gás lacrimogêneo, e sofrer maus-tratos.
Quando surgem problemas com policiais e soldados (PMs não são policiais, são uma coisa mais estranha que não cabe aqui explicar) que querem cumprir regras, eles em geral são girados de delegacia em delegacia, cada vez mais longe da casa, até aceitar os esquemas normais. Além disso, é recorrente esquecerem tudo o que aprenderam na academia, sempre considerado bobagem, direitos humanos então? - todos sabem, mas o problema é que eles também acabam sem direitos no meio das camarilhas.
Tentativas de reforma já foram tentadas e falharam em todas as vezes, principalmente a tentativa no governo Montoro. Lá, houve confronto com tiroteio nas delegacias (a PM cercou e atirou nas delegacias) e depois de três meses o governador Montoro abandonou o grupo de policiais honestos que reuniu achando que se abandonasse a repressão da PM, ia haver aumento da violência conforme propagado pela imprensa. Ao contrário, o que isto levou foi ao advento da ascensão da violência desta fase que chega ao pico nos anos 80 quando a PM entra em novo confronto com a Civil desta vez disputando pontos de tráfico no centro.
Nos anos noventa aí a coisa foi pro brejo, mas houveram manifestações de PMs em greve em outras partes do país, resultando em prisão, tortura e intervenção federal do Exército quando convinha contra os grevistas.
A PM sofre do problema de não ser nem militar nem civil, isto é, nem ganha bem, nem tem atribuição específica... cobram todo tipo de coisa, ela se modifica conforme os interesses dos batalhões específicos onde permanecem as ideologias e "técnicas" da ditadura. O principal é que por defenderem a ordem, eles defendem algo acima da lei que não é específico, sem serão um exército dentro do quartel com regras específicas, eles estão passeando por aí de camburão levando o terror aos transeuntes. A idéia de ordem diz respeito a algo acima da lei que permanece mesmo quando a lei muda, como conjugar isto e uma força policial?
Isto faz com que se tornem em parte esta coisa doida que são. Poucos sabem, mas a reunião mais importante de um governador empossado é com as polícias, parece normal até, exceto por um detalhe, esta reunião é onde põe a questão do limite das atribuições do governador em relação às polícias e não o contrário.
Fora isso, a polícia civil raramente entra em greve por causa, principalmente, dos delegados, se isto ocorre, é pra valer. Agora, até onde isso vai, infelizmente depende dos governos federal (que criou uma tropa de choque nacional do exército) e estadual (as polícias militares), isto é, se eles vão querer briga e até onde vai.
Há o receio de que tendam a militarizar ainda mais a polícia civil e não o contrário. Afinal a tendência geral é comprarem equipamentos e não qualificarem o trabalho e acabarem com a corrupção dando outras opções melhores, etc.
Toda a vez que algum governador diz: vou melhorar a segurança pública, normalmente ele quer dizer que além de dar destaque a casos exemplares, ele vai comprar acessórios, como crianças antigamente em relação aos comandos em ação, compra arminhas, tanque, helicóptero, metralhadora, tudo menos imaginar que há alguém que faz isso e precisa ser qualificado, parecendo pressupor alguém controlado e disciplinado como um soldado, mas que ganhe pouco como um leão de chácara.
Mas, mais estranho é, como estão se ligando nacionalmente os policiais civis se não é via representação sindical? É utilizando antigos os contatos dos sistemas de inteligência para repressão?
Fica aberta esta questão...
Nenhum comentário:
Postar um comentário