segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Defesa de torturadores da ditadura divide o governo Lula

BRASIL DE FATO

União assume defesa de chefes do Doi-Codi; “Lula vai ter que se posicionar”, afirma socióloga

Tatiana Merlino
da Redação

A briga pela punição dos agentes do Estado responsáveis por crimes de tortura, desaparecimento e assassinatos durante a ditadura civil-militar (1964-1985), sofreu um revés nos últimos dias. Dia 14 de outubro, a Advocacia Geral da União (AGU) assumiu a defesa dos coronéis da reserva Carlos Alberto Brilhante Ustra e Audir dos Santos Maciel, em processos que são acusados de tortura.

Ambos são alvo de ação civil pública impetrada pelo Ministério Público Federal (MPF) pela tortura de presos políticos e a morte de 64 deles, entre 1970 e 1976, período em que comandaram o Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI/Codi), um dos maiores centro de repressão do regime militar.

O argumento da União é de que os crimes políticos ou conexos praticados durante a ditadura incluindo a tortura, foram isentos pela Lei de Anistia, de 1979. "A lei, anterior à Constituição de 1988, concedeu anistia a todos quantos, no período entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos (...). Assim, a vedação da concessão da anistia a crimes pela prática de tortura não poderá jamais retroagir", diz o documento.

Má interpretação
A ação do Ministério Público contra Ustra e Maciel é a primeira a divergir da interpretação de que a Lei de Anistia protege torturadores. No processo, os procuradores da República Marlon Weichert e Eugênia Fávero pedem que Ustra e Maciel sejam responsabilizados financeiramente pelas indenizações pagas pela União às vítimas da ditadura militar mortas, desaparecidas ou torturadas no Codi, além de que sejam proibidos de exercer qualquer função pública.

Em reação, o ministro Paulo Vanucchi (Direitos Humanos), disse que caso a AGU resolva manter a defesa dos torturadores, ele irá pedir ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva para sair do governo. “Fui chamado para esse cargo pelo presidente Lula, e, apesar de estar com problemas de ordem pessoal aceitei, para poder avançar na defesa dos direitos humanos”, disse. “Ou para-se com essa ambiguidade [dentro do governo], ou voltarei à sociedade civil para cumprir esse papel”, disse, referindo-se à luta pela responsabilização dos crimes cometidos pelos militares. Segundo o ministro, a peça de defesa de Ustra produzida pela AGU será utilizada por torturadores em suas defesas.

Vitória na Justiça
Vanucchi, que esteve na cerimônia de entrega do prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, em São Paulo, dia 27 de outubro, citou a recente decisão da Justiça de São Paulo, que declarou Ustra torturador em uma ação civil declaratória movida por cinco integrantes da família Teles, todos torturados no Doi-Codi, sob comando do militar.
De acordo com especialistas, a AGU não precisava assumir a defesa dos coronéis na ação. “Essa posição é uma vergonha. Está muito claro que é uma decisão política”, avalia a socióloga Beatriz Affonso, diretora do Centro pela Justiça e Direito Internacional (Cejil).

Segundo ela, a função da AGU é defender os interesses do Estado. “Se fosse uma decisão técnica, optariam por defender o ressarcimento aos cofres públicos do dinheiro que foi pago em forma de indenização às famílias por danos morais causados por agentes do Estado”, salienta. Para ela, a posição da AGU deveria ser “no mínimo neutra, e mesmo assim, já causaria espanto”.

Estado negligente
Beatriz participou de audiência realizada na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), na sede da Organização dos Estados Americanos (OEA), em Washington, dia 27 de outubro. De acordo com a socióloga, a audiência foi solicitada pelo Cejil, para esclarecer que a Lei de Anistia é interpretada no Brasil de maneira errada. “Fomos explicar como a Justiça vem funcionando no país no que se refere à punição de agentes do Estado que participaram de crimes de tortura, sequestro e assassinato durante a ditadura”, diz. Segundo ela, um dos objetivos da audiência foi fortalecer a idéia de que o Estado brasileiro não está investigando nem punindo os torturadores.

Beatriz reforça a tese defendida por juristas, pelos procuradores do MPF que ingressaram com a ação e pelos ministros Paulo Vanucchi (Direitos Humanos) e Tarso Genro (Justiça): “tortura é crime de lesa-humanidade, e portanto não é passível de anistia nem de prescrição”.

Tomada de posição
Com a mesma interpretação, e para se contrapôr à posição da AGU, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) deu entrada, dia 21 de outubro, em uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF), na qual solicita que “os crimes praticados por militares e policiais durante a ditadura, como a tortura e o assassinato de militantes, não tenham a cobertura da Lei de Anistia”. De autoria de Fábio Konder Comparato e Maurício Gentil Monteiro, a ação da OAB afirma que “não podia haver e não houve conexão entre os crimes políticos, cometidos pelos opositores do regime militar, e os crimes comuns contra eles praticados pelos agentes da repressão e seus mandantes no governo”.

Na avaliação de Beatriz Affonso, se o governo Lula tivesse decidido fazer justiça e estivesse julgando e punindo os torturadores da ditadura, “não precisaríamos chegar ao ponto de ter que levar o caso às instâncias internacionais”. “Isso é muito triste. Quando vier uma sanção internacional, o país será obrigado a cumpri-las, entregando os corpos e fazendo justiça”, lamenta. Segundo ela, no entanto, antes disso, o presidente Lula vai ter que se posicionar. “Não dá mais para ficar neutro. Ele vai ter que assumir se quer ou não responsabilizar os torturadores”.

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