Há 90 anos, em 15 de janeiro de 1919, Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht foram assassinados durante os desdobramentos dos confrontos entre o governo (social democrata) da então nova e emergente república alemã e uma revolta de trabalhadores. O crime foi inominável.
Flávio Aguiar
Há 90 anos, em 15 de janeiro de 1919, Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht foram assassinados durante os desdobramentos dos confrontos entre o governo (social democrata) da então nova e emergente república alemã e uma revolta de trabalhadores confusamente liderada pelos comunistas do movimento Spartakista, nome dado em homenagem a Espartaco, o gladiador romano que liderou uma revolta de escravos na antiguidade.
O crime foi inominável, os confrontos foram sangrentos, sobretudo para um dos lados, os trabalhadores revoltados. A Alemanha, derrotada na Primeira Guerra Mundial, estava em frangalhos. Da Rússia vinham os ecos da revolta comunista de 1917, bem sucedida. Ao mesmo tempo, os olhos dos socialistas e comunistas do mundo inteiro voltavam-se para a Alemanha, sobretudo para Berlim, coração do movimento revolucionário.
Entre greves e confrontos de rua, um outro movimento sombrio crescia nas dobras das contradições dos social-democratas, de cujo partido Liebknecht fizera parte inclusive como deputado. No poder, tentando se equilibrar entre a queda da monarquia e a emergência da república e da revolta de trabalhadores e marinheiros (como acontecera na Rússia) os social-democratas Friedrich Ebert (Chanceler) e Gustav Nolke (Ministro da Defesa) deram acolhida, luz verde e incentivo para o corpo de paramilitares que se formava com remanescentes e egressos do desmoralizado Exército alemão.
O espírito de corpo da instituição fervia em brios feridos, pois fora não só desmoralizado externamente, pela derrota na guerra, mas também internamente, sendo batido nas tentativas de repressão a movimentos de trabalhadores e marinheiros. Aqueles remanescentes reorganizaram-se como milícias independentes, mercenárias, mas orientadas ideologicamente para a direita, com o nome já tradicional de “Freikorps”, cuja tradução mais adequada não seria a literal “Corpos Livres”, mas sim “Brigadas Livres” ou “da Liberdade”.
Diante do tumulto que tomava conta da capital alemã, a partir do Natal de 1918, dividida entre trabalhadores (mal) armados que tomavam de assalto redações de jornais, delegacias de polícia, promoviam greves e armavam barricadas nas ruas e praticamente dominavam bairros operários, Ebert e Nolke literalmente “soltaram” os Freikorps sobre os revoltosos.
Atribui-se ao sombrio Nolke a frase “alguém tem de bancar o cão de caça”.
Ao contrário dos trabalhadores, os Freikorps eram bem equipados, tinham armamento até então privativo das Forças Armadas, e guardavam, em seu corporativismo, um ódio frontal aos esquerdistas e movimentos operários. De certo modo, eram revanchistas do espírito monárquico, pisoteado pela Guerra e pelas marchas de trabalhadores nas ruas de Berlim e de outras cidades alemãs. O historiador Isaac Deutscher comentou que a repressão dos Freikorps sobre os trabalhadores em 1919, que se desenvolveu de modo extremamente sangrento de janeiro a março, foi “a última vitória dos Hohenzollern [a dinastia do império alemão] e a primeira dos nazistas”.
Com efeito, há dados impressionantes. Muitos membros dos “Freikorps” não só aderiram aos nazistas, mas tornaram-se figuras de proa. (Curiosamente, um deles, Josef Beppo Rommer, depois “converteu-se” ao comunismo, tornou-se membro do partido, e foi morto pelos nazistas em 1944). Dos membros dos Freikorps saíram 7 altos oficiais da SS e das Forças Armadas do 3° Reich, entre eles o general Wilhelm Keitel, condenado e executado em Nuremberg, e Martin Bormann, assessor direto de Hitler que, ao que parece, morreu de fato ao final da Guerra ainda em Berlim, embora durante muito tempo houvesse dúvidas quanto a isso e se suspeitasse que ele tivesse fugido para a América do Sul.
Um dos assassinos diretos de Rosa Luxemburgo, que a interrogou na noite de sua morte, era Hort von Pflugk-Hartung, que mais tarde se tornaria figura proeminente na inteligência e espionagem alemãs na Dinamarca, com serviços prestados também ao regime falangista de Francisco Franco.
Ao contrário de Liebknecht, Rosa Luxemburgo, pelo menos de início, se opôs ao levante de final de dezembro/começo de janeiro. Mesmo Karl, como ela, foi um tanto arrastado pelos acontecimentos. O Movimento Spartakista, como era conhecido o comunismo alemão, depois de sua ruptura com os social-democratas, estava profundamente dividido. Muitos achavam que era necessário negociar com o governo; outros que não, que era chegada a hora de erguer definitivamente as bandeiras vermelhas em Berlim e na Alemanha. Contavam estes com o apoio dos soldados e dos marinheiros revoltados, o que acabou não acontecendo.
A partir da primeira semana de janeiro os liberados Freikorps tomaram de assalto a estratégica Alexanderplatz e suas imediações, quebrando a espinha dorsal da revolta. E num golpe ao mesmo tempo ousado, vingativo e covarde, assassinaram as duas personalidades maiores do movimento revolucionário, que tinham condições de liderá-lo e de talvez melhor organizá-lo, a Rosa Vermelha de Berlim (embora nascida na Polônia, de uma família judia) e Liebknecht, cujo jornal, “A Bandeira Vermelha”, era uma espécie de alma da revolução.
Ambos foram presos, com outros spartakistas, no dia 15 de janeiro, e levados para um hotel, chamado Éden. Lá foram interrogados com requintes de crueldade, e por fim foram mortos. Rosa foi golpeada várias vezes na cabeça e na nuca, e por fim recebeu um tiro pelas costas. Seu corpo foi jogado num dos canais da cidade. Meses depois foi encontrado, e hoje repousa num mausoléu em sua honra no Cemitério de Friedrichsfelde. Além de Hartung, interrogou-a também o Capitão Waldemar Pabst, que sempre afirmou que Nolke e Erbert de tudo sabiam e tudo aprovaram. Liebknecht foi levado para um parque da cidade e lá assassinado com um tiro na nuca.
Na repressão que se seguiu e que se estendeu até março, morreram de 1.200 a 1.500 trabalhadores, spartakistas e revolucionários. As perdas dos Freikorps foram mínimas. Quando a tempestade amainou, a revolução alemã estava prostrada, com consequências gravíssimas até hoje para o mundo todo.
Todos os anos, nesta época do ano, há homenagens a Rosa, Karl e as outras vítimas daquela trágica circunstância. Hoje essas homenagens são lideradas pelo novo partido de esquerda, a Linke, que se propõe herdeiro das lições dos dois grandes revolucionários, cuja sede ocupa o prédio, hoje restaurado, que durante décadas, antes do nazismo, foi sede dos movimentos de esquerda e que leva o nome de Liebknecht. Os nomes de ambos, Rosa e Karl, estão espalhados por Berlim, em memoriais, avenidas e logradouros.
As palavras também. Como homenagem, lembremos as derradeiras que Rosa escreveu, na noite mesmo de seu assassinato:
“A ordem reina em Berlim! Oh, vocês, estúpidos capangas! A “ordem” de vocês está erguida sobre areia. Amanhã a revolução se erguerá com fragor, e proclamar em alto e bom som, para o terror de vocês: eu fui, eu sou, eu serei!”.
Lembremos também que Rosa escreveu que “A liberdade é sempre a liberdade do dissidente”, ao criticar o autoritarismo que pressentia na revolução russa. Talvez uma tradução da frase, a partir de seu sentido de base, dissesse que “o fundamento da liberdade é a liberdade de dissentir”. (Freiheit ist immer Freiheit der Andersdenkenden).
E não esqueçamos que ela e Liebknecht fizeram ingentes esforços para evitar a guerra, em nome da solidariedade internacional e da paz, que sempre foi uma bandeira dos trabalhadores e dos movimentos socialistas.
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